quinta-feira, 9 de novembro de 2006

As desventuras do comunista A. Vilarigues


António Vilarigues tem pergaminhos a defender. Pais perseguidos e encarcerados durante anos, como nos recordou, não esquece o ódio ao fascismo salazarista. Pleno direito, o seu, e ódio mais do que justificado, que o impele a martelar em quem lhe negou uma infância igual à de tantos outros meninos da sua idade.

O ódio visceral à ditadura fascista, pelos vistos, deixou-lhe na mente marcas profundas e variadas, a ponto de o fazerem confundir o fascismo, e o fascismo à moda lusitana, com o capitalismo, reduzindo este às limitações do corporativismo com que o rafeiro asqueroso do Manholas embrulhou este país durante quase cinquenta anos. Traumatizado como ele, porque alvo preferencial da perseguição por se dirigir ao operariado, assim foi o discurso e a prática do PCP. Nado e criado "na casa” (diga-se “no partido”), a vida a ouvir as mesmas ladainhas, não admira que o discurso de A. Vilarigues seja mera repetição da costumeira cassete, ainda que muito menos apurado estilisticamente do que o do Álvaro Cunhal, o do Vítor Dias (outro avençado do Público...) ou o dos especialistas na escrevinhação de comunicados, que parece abundarem na organização.

Insensatamente, devido a estas compreensíveis limitações, A. Vilarigues aceita ser avençado do Público, um jornal de grande tiragem, não para fazer apreciações sobre a política quotidiana, segundo a sua perspectiva pessoal ou a do seu partido, como faz o seu camarada Dias, por exemplo, mas para discorrer sobre as maleitas do capitalismo, sobre as bondades do marxismo-leninismo e sobre a anunciação necessária do comunismo. Como não é um Álvaro, que dominava a cartilha e não se engasgava, nem um Barata-Moura, que é um verdadeiro artista, dominando os fundamentos filosóficos e os das cantigas, fazendo-nos sorrir com o seu Fungágá da Bicharada e outras infantilidades, A. Vilarigues mais não faz do que caminhar, de falácia em falácia, para o descrédito total.

Diz ele que "utilizar como método de análise a transformação do desejo pessoal em realidade, conduz, em regra, a conclusões erradas”. Nada mais certo. E que faz ele, o seu partido e todos os comunistas se não confundirem os seus desejos pessoais e de grupo com a realidade? E diz mais, afortunadamente, que “proferir afirmações dogmáticas sem as demonstrar dá maus resultados". E que faz ele, o seu partido e todos os comunistas se não proferirem afirmações dogmáticas sem as demonstrarem? Infelizmente, Vilarigues nem se apercebe de que os métodos que tanto verbera são precisamente os que usa, assim como o seu partido e os seus camaradas comunistas.

Para justificar o comunismo como modo de produção sucessor do capitalismo não basta descrever as características do capitalismo ou fixar-se nas maleitas que produz (visto que não produz apenas maleitas… e a descrição falaciosa das maleitas se assemelhar ao fado da desgraçadinha); e é de todo supérfluo comparar categorias incomparáveis ou, em linguagem corrente, comparar alhos com bugalhos. Seria necessário, antes de mais, demonstrar que essa sucessão necessária tem qualquer fundamento na realidade empírica, e não, é claro, no desejo e na ilusão idealista. Já não digo que o fundamento a invocar seja uma qualquer característica intrínseca do capitalismo e dos modos de produção que tenham existido antes dele, mais difícil de descortinar, mas, ao menos, uma qualquer analogia com o que se tenha passado na História. Neste caso, conviria não confundir a sucessão de modos de produção, e a previsível sucessão do capitalismo, com a sua necessária sucessão pelo comunismo, que é o que está em causa.

O par de profetas fundadores da utopia comunista proletária afirmou que tal se deveria ao movimento das coisas, à revolucionarização constante das forças produtivas efectuada pelo capitalismo. Passado este tempo, A. Vilarigues e os seus camaradas já poderiam ter visto que o movimento das coisas conduz a muito lado, mas não desemboca no comunismo. Se assim fosse, seria escusado afirmá-lo e reafirmá-lo constantemente, desejá-lo tão ardentemente e empenharem-se tão afadigadamente na acumulação de forças para que à chegada da almejada crise revolucionária definitiva o golpe de Estado insurreccional possibilite aos comunistas a conquista do poder (à moda do sempre sonhado Outubro Vermelho, que não mais se repetiu).

O profeta maior anunciou que a causa seria o pauperismo absoluto do proletariado (daí o verso da Internacional, ainda hoje cantado: De pé, ó vítimas da fome…) — e não o empobrecimento relativo, como falaciosamente afirmam A. Vilarigues e os seus camaradas comunistas, pretendendo comprovar aquele empobrecimento com o alargamento do fosso que separa os ricos dos pobres — porque no limite a burguesia não conseguiria extrair mais-valia suficiente para a manutenção da taxa de lucro e para a continuidade da acumulação nos mesmos moldes.

Nessa fase do seu estudo, o velho Marx já não encontrou outras justificações e quedou-se por aí, num contraste gritante com a profecia que fizera na proclamação panfletária de anos atrás. Notada a lacuna, os discípulos trataram de propalar uma hipotética crise geral, e, depois, uma hecatombe de efeitos mais devastadores, através dum colapso do capitalismo, uma e outro frutos dos seus desejos delirantes.

Os modernos clérigos das seitas comunistas, desprovidos dos dotes adivinhatórios dos profetas, arcando com o difícil fardo da falência de todas as experiências comunistas, menos dados ao estudo, desesperados com o futuro que nunca mais acontece, recorrem a uma versão apocalíptica — à moda de um dos profetas bíblicos, que ameaçava os ímpios com as labaredas do inferno — aterrorizando-nos com uma catástrofe iminente, que nos reconduzirá à barbárie!

Em coerência com o método crítico usado pelo profeta Marx, A. Vilarigues deveria repudiar, de facto, o método idealista de confundir os desejos com a realidade, que apenas afirma repudiar; e deveria também deixar-se de repetir afirmações dogmáticas, sem as demonstrar. Como ele próprio afirma, persistir nestes vícios conduz a conclusões erradas e dá maus resultados. No seu caso pessoal, e no dos comunistas, conduz mesmo a péssimos resultados.

Para ser coerente com o que verbera, e já que se meteu, desastradamente, nesta empreitada, poderia aproveitar o espaço que lhe concedem no Público para demonstrar-nos a validade da teoria do valor e da exploração, da transformação dos valores em preços de produção, da queda tendencial da taxa de lucro; depois, através da análise materialista da História, poderia demonstrar-nos que na sucessão dos modos de produção têm sido as classes exploradas a suceder às suas classes exploradoras; e, por fim, recorrendo à famosa teoria da contradição entre as forças produtivas materiais e as relações de produção, presentear-nos com a demonstração de que as forças produtivas, podendo ser muita coisa, podem também transformar-se no proletariado e, travestidas nesta classe social, podem entrar em contradição irredutível com as relações de produção capitalistas e promover a revolução comunista. Se o fizesse com êxito convenceria cépticos e descrentes e engrossaria o seu rebanho.

É claro que A. Vilarigues não pode fazer nada disto. A crença na predição profética de que o comunismo será o necessário sucessor do capitalismo não passa de mais uma crença idealista, fruto da confusão entre desejo e realidade, que se mantém através da fé, a mesma fé que faz com que milhões de outros crentes vão em romagem a Fátima ou aguardem convictamente pela vinda do Cristo redentor.

As profecias marxistas nada têm a ver com a realidade, muito menos o tem o catecismo marxista-leninista que A. Vilarigues mais não faz do que recitar; as críticas do Marx às principais concepções dos ideólogos clássicos do capitalismo estão no fundamental erradas, e se tal não lhe retira mérito neste campo não acrescenta nada de bom à sua credibilidade de profeta.

É confrangedora a incapacidade dos comunistas para enxergarem que os defeitos que apontam aos outros — de confundirem os desejos com a realidade e de proferirem afirmações dogmáticas sem as demonstrarem — são precisamente os mesmos de que eles padecem, ao repetirem até à exaustão as predições idealistas e os dogmas em que se baseia a sua cartilha marxista-leninista. E quando lhes afirmamos que a sua persistência e fervor os fazem assemelharem-se aos fanáticos religiosos sentem-se ofendidos, como se os caluniássemos de forma infame. Como a todos os crentes pela fé, aos comunistas aplica-se plenamente o velho aforismo: o pior cego é aquele que não quer ver.

Uma pequena nota, à margem do assunto. Tenho ouvido muitas coisas a respeito do director do Público, José Manuel Fernandes, a maioria delas injustas. Não falo por lisonja, porque discordamos em quase tudo, e a mim próprio ele tem rejeitado a publicação de vários textos. Neste caso da avença do A. Vilarigues, contudo, parece-me que a astúcia do José Manuel Fernandes atinge a perversidade: o sujeito não só lhe dá espaço e corda, como ainda por cima lhe paga para se ridicularizar à vontade, a ele e ao comunismo...É caso para dizer que o anticomunismo daquele Fernandes é maquiavélico!