quarta-feira, 17 de outubro de 2007

As erradas concepções marxistas, agora em jeito mais coloquial


Um leitor interessado levantou um conjunto de dúvidas e de divergências acerca das ideias defendidas nalguns dos textos publicados. Ligeiramente corrigidas, aqui ficam as respostas que então lhe dei.


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1-Muitos conceitos do Marx são aceitáveis como reconstituição de elementos significativos da realidade social. A constatação de que existem relações sociais estabelecidas naquilo que é básico para a existência — a produção das condições materiais dessa existência — e designar essa parte da realidade por estrutura, e que existem outras relações sociais estabelecidas ao nível das representações que se fazem dessa parte da realidade, que são materializadas em instituições cuja função é assegurar a regulação e a reprodução daquelas relações, e designar esta outra parte da realidade social por superstrutura, parece-me uma feliz conceptualização do Marx. Não vejo razão, por enquanto, para abandonar esses conceitos. A reconstituição conceptual da realidade social foi um dos grandes avanços do pensamento; e o facto do Marx a ter feito nos meados do século XIX é um seu mérito inestimável.

A obra do Marx é constituída por um projecto político, por uma narrativa da realidade social do seu tempo e por uma crítica da economia política. O essencial do pensamento teórico marxista é a concepção da realidade social ao nível da economia política e um esboço de teoria sobre a revolução social. Para criticar essas concepções deve-se verificar a validade da argumentação e, depois, a verdade das conclusões. No que se refere à crítica marxista das questões fundamentais da economia política, mesmo usando os conceitos marxistas, constata-se existir incoerência argumentativa, o que lhe retira validade, e falsidade das conclusões, porque uma ou mais das premissas aceites como verdadeiras não se mostram plausíveis. Mas não basta afirmar que esta ou aquela concepção marxista é errada; é necessário demonstrá-lo, adoptando, para esse efeito, o próprio corpo conceptual do Marx. Depois de demonstrada a falsidade das concepções, então, será necessário produzir outras, recorrendo à elaboração de outras relações entre os conceitos do próprio Marx que se mostrem aceitáveis ou à criação de novos conceitos e respectivas relações se os disponíveis se mostraram inadequados.

Estou convicto de que o Marx gostaria de ter encontrado no seu tempo críticos à altura. Como poderoso polemista, seria um desafio à sua grande capacidade de observação e de argumentação. Infelizmente, as coisas não ocorreram assim. Em vez de críticos, o Marx encontrou adeptos, pessoas para quem as suas concepções confirmavam o que desejavam ver confirmado. Muitos desses adeptos eram jovens intelectuais para quem a compreensão do pensamento marxista constituía um desafio. Sem excepção, não chegaram a compreender a fecundidade conceptual do Marx e não passaram de apologetas. Esse mesmo fenómeno constata-se ainda hoje. A generalidade dos marxistas modernos não compreende as concepções do Marx. Aceita-as e recita-as, repetindo os mesmos erros e falsidades. E a forma laudatória como o faz é elucidativa da sua incompreensão. Não compreendendo a obra do seu mestre, os marxistas não poderiam questionar as suas principais concepções, apesar dos absurdos que nelas se podem detectar; muito menos poderiam produzir qualquer inovação. Por esta razão, o marxismo não conheceu qualquer evolução para além da obra do próprio Marx.

Mesmo sendo um crítico severo das concepções do Marx acerca da transformação da realidade social, do valor de troca das mercadorias e da génese do lucro e da exploração que o possibilita, não posso esconder que mantenho uma grande admiração pela sua obra. Submeter as concepções teóricas do Marx ao crivo da crítica não tem em vista apenas demonstrar os erros que conduziram à invalidade da sua argumentação e à falsidade das suas conclusões; a partir da sua refutação, é possível formular novas concepções, muito mais plausíveis, para os fenómenos que ele abordou, que continuam constituindo os aspectos fundamentais da economia política e da transformação social. Não fossem as repercussões negativas resultantes da prática do seu projecto político, baseado numa profecia messiânica classista destituída de qualquer fundamento, a componente científica da obra do Marx poderia ter sido objecto de estudo crítico aturado, cujos resultados certamente nos ajudariam a compreender melhor a realidade social. Tal não aconteceu e continuaram o repúdio e a apologia tradicionais, estéreis. De qualquer modo, em meu entender, apesar dos erros argumentativos e das conclusões falsas, ela ficou constituindo um marco pioneiro do maior relevo no panorama do pensamento sobre a realidade social. Os erros em nada diminuem o mérito do Marx, porque ninguém, por maior que seja o talento, pode escapar ao contexto científico do seu tempo, principalmente num campo extremamente ingrato, que faz recurso ao pensamento especulativo, e no qual ele se destacou pelas sínteses originais que intentou. Depois da crítica, por enquanto apenas esboçada, restará do pensamento do Marx a riqueza conceptual. Sobre a concepção da revolução social, que o Marx apenas esboçou, nada restará.

2-Os modelos são objectos conceptuais com os quais se pretende reconstituir um objecto muito complexo chamado realidade, mesmo que restrito ou circunscrito a uma sua parte ou a uma qualquer ocorrência. Quando se pretende reconstituir a realidade social, um objecto instável e do qual os observadores são parte integrante, então, as dificuldades da modelação resultam muito acrescidas. Como objectos conceptuais, os modelos utilizam conceitos, eles próprios objectos do pensamento, elaborados como elementos reconstituídos de partes ou de aspectos relevantes do objecto de estudo; e tentam explicar as relações entre os conceitos de forma coerente e de modo que a totalidade dos elementos dispersos, que parecem relacionar-se de forma caótica, sob que se apresenta a realidade empírica, adquira um sentido consistente, porque válido e plausível.

Todas as teorias, enquanto instrumentos dos modelos explicativos da causalidade ou do desenrolar de um fenómeno, sofrem das limitações inerentes à modelação da realidade. Mas para nos aventurarmos na produção de conhecimento não podemos proceder de outra forma se não por tentativas de elaborar modelos cuja verosimilhança com a realidade que pretendem reconstituir seja cada vez maior. A ciência busca a verdade, o conhecimento sobre um objecto coincidente com o que ele é de facto. Felizmente, produz somente conhecimento credível, sob a forma de hipotéticas verdades, crenças plausíveis e justificadas. Por parcial e incerto, o conhecimento científico é apenas útil, e por essa característica é sufragado, pelas formas mais diversas de escrutínio, sendo muitas vezes aceite por prazos muito curtos, porque sujeito à crítica e à refutação. Que poderemos fazer para desvendar a forma misteriosa com que a realidade se nos apresenta se não irmos procedendo como modernos aprendizes de feiticeiro armados da razão? Mas quem a tal se aventura são seres humanos com alguma dose de loucura, temos de reconhecê-lo, que têm a audácia de enveredarem por terrenos difíceis e a ousadia de se intrometerem num campo durante tanto tempo reservado aos deuses.

3-Em relação à transformação social, nomeadamente em relação à sua componente política e ideológica. A violência é uma constante da História, de facto. Não há como iludir. A violência, com a sua força destruidora, elimina pessoas, desfaz coisas e objectos. E os homens que a praticam estão imbuídos de fortes interesses ou de representações que lhes proporcionam grande motivação, por vezes incutida pelo pensamento mágico (como são as representações religiosas). O direito ao auto-governo e à soberania sobre o próprio território, à auto-determinação, é um dos interesses susceptíveis de incutirem grande motivação para o voluntarismo. As revoluções políticas e as lutas pela libertação nacional do jugo colonial ou da ocupação estrangeira são desde sempre uma causa fortemente motivadora das comunidades humanas. Nas guerras em que essas lutas se podem transformar, como em todas as guerras, desaparece o verniz dos valores éticos e morais com que constantemente pretendemos dar consistência à convivência.

O voluntarismo, porém, não muda as formas como organizamos o trabalho e repartimos o produto, as relações estabelecidas na produção. Cada geração, à medida que entra na produção, de forma descoordenada, encontra já dadas as condições em que se integra e as relações que as determinam. O voluntarismo político, por maior que seja, não tem capacidade para mudar as relações que de forma inconsciente foram sendo estabelecidas ao longo do tempo. A não ser pelo recurso à coerção violenta. Pode importar formas económicas que já provaram ser mais eficazes e eficientes, e aos poucos, através dos superiores resultados que obtém, ir transformando essas relações; isso, ainda vá. Mas se pretende implantar formas cuja superioridade é apenas imaginada, desejada, e sem qualquer suporte comprovativo na realidade, o malogro é o desfecho mais natural de tamanha pretensão.

4-As experiências revolucionárias comunistas não descambaram no seu contrário. Nada se transforma no seu contrário. O que designamos por contrário de algo ou já existe na realidade, nascendo nela por efeitos de relações por vezes secundárias que se foram desenvolvendo, ou então não se manifestará como tal. Do mesmo modo, a teoria da contradição entre coisas ou entre coisas e pessoas, ela, sim, é uma contradição pegada, uma completa cegada. É em grande parte por fazer recurso da dialéctica hegeliana, ainda que transformada e invertida, que o marxismo não ultrapassou a fase do erro lógico grosseiro.

Não é só agora que o marxismo está errado. Sempre esteve. Os resultados da experimentação prática do projecto político marxista apenas confirmaram que a suposta supremacia do comunismo não passava disso. A prática acabou por comprovar a falácia da proclamação panfletária, do projecto político messiânico. Como os comunistas, enquanto os regimes duraram, quiseram apresentar a sua existência como confirmação da validade teórica do marxismo, a partir da sua falência poder-se-ia deduzir que a teoria também estivesse errada. Mas a existência ou a falência dos regimes políticos comunistas nada tem a ver com as concepções teóricas do Marx; a sua referência é a profecia messiânica classista contida na proclamação panfletária Manifesto do Partido Comunista, de 1848, e os acrescentos que os apóstolos mais destacados foram produzindo para a conformar com a realidade. Deste modo, apenas a crítica teórica daquelas concepções conseguirá demonstrar a sua falsidade.

Quem tivesse maturidade e formação política na altura da revolução comunista na Rússia e conhecesse o que se foi passando teria tido possibilidade de se aperceber de que o comunismo não teria grande futuro. Lenine foi um dos primeiros a vê-lo. Sempre à espera da revolução proletária na Alemanha ou noutros países desenvolvidos, e a magana a fazer negas. Que restava então ao partido bolchevique, depois da guerra civil tão devastadora que se seguiu ao putsch de Novembro? Depor as armas e entregar o ouro ao bandido? Continuar com a política de recurso que foi a NEP e permitir o desenvolvimento do capitalismo individual concorrencial? Não aguentaria muito tempo no poder, e aos comunistas esperá-los-ia o mesmo que haviam feito aos adversários: o julgamento sumário e o fuzilamento, ou coisa pior. A opção pela colectivização forçada, recorrendo aos métodos mais bárbaros para vencer a oposição e a reacção do campesinato — que não aceitava a viragem dos comunistas e resistia às requisições de colheitas e de meios de produção e ao confisco das terras (algumas de que tinham sido servos durante gerações e que os bolcheviques lhes haviam concedido a propriedade plena tão pouco tempo antes, como recompensa pelo seu envolvimento e apoio na revolução) — e para impor-lhe a integração em cooperativas e em herdades do Estado, e pela instalação da indústria pesada, com a planificação centralizada da economia, enfim, pelo capitalismo de Estado monopolista, foi o curso possível daquela história.

E aquela história, que não teria sido possível sem o estalinismo, mais do que por qualquer outra razão aconteceu pelo medo de muitos, pelo entusiasmo que a propaganda conseguiu incutir na juventude (a quem os novos valores permitiam escapar do domínio patriarcal e adquirir a liberdade do cosmopolitismo e a igualdade, apenas eventualmente sonhadas) e pelo fervor nacionalista que conseguiu despertar em muitos outros por estar construindo um país moderno em contraposição à sociedade atrasada e arcaica do velho Império, tudo com o controlo duma feroz ditadura que reprimia barbaramente para exemplo. A realidade é muito menos idílica do que a pinta a propaganda, e é muito menos linear e menos simplória do que a sua reconstituição histórica pode fazer supor, e foram estes ingredientes, e não os de qualquer receita marxista ou leninista, que permitiram edificar o comunismo. A própria ideologia legitimadora, o marxismo-leninismo, que em boa verdade deveria ser designada por leninismo-estalinismo, foi construída e difundida posteriormente como catecismo, como forma de cimentar e dar coesão à nova sociedade em construção. O apoio internacionalista veiculado pelos partidos comunistas, que entretanto se tinham ido formando, procurando imitar a revolução russa e, depois de esmagadas as insurreições que alguns desencadearam, subordinando a sua acção à defesa do Estado soviético, constituiria outro importante meio propagandístico para a mitificação do comunismo. Pela primeira vez, os trabalhadores assalariados (ou os antigos camponeses que o comunismo transformava rapidamente em operários, em técnicos, em engenheiros, em professores, em médicos) tomavam conta do poder e passavam a ter o destino nas suas mãos. O sonho tornava-se realidade. Havia lá coisa mais bela?

O surgimento do fascismo e do nazismo — em parte como reacção ao bolchevismo, mas também como soluções de recurso das burguesias nacionais em países empobrecidos pela guerra e com grande agitação social provocada por milhões de desmobilizados desempregados — face à fragilidade das democracias parlamentares e às suas dificuldades para controlarem a desordem social; a grande depressão de 1929 e a crise de subprodução que se lhe seguiu por alguns anos, agravando as condições de existência de muitos milhões de trabalhadores por todo o Mundo e baixando o nível de vida mesmo nos países desenvolvidos da época; as possibilidades de negócio que a banca internacional e muitas empresas capitalistas industriais encontraram na Rússia, como financiadora e fornecedoras de toda a sorte de equipamentos industriais e agrícolas, recebendo os pagamentos em ouro ou noutros metais preciosos, em trigo, em petróleo, em moedas fortes, etc.; o rearmamento da Alemanha nazi, de que a Rússia também beneficiou, através de acordos bilaterais secretos; a grande guerra patriótica que se lhe seguiu, e a ascensão da Rússia (já sob a forma de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em que a revolução socialista transformara o Império czarista) à condição de grande potência no concerto das nações vencedoras, como prémio pelo seu contributo decisivo para a reviravolta do curso da guerra de agressão e pelo elevado preço pago em vidas e em destruição do seu território; a tomada do poder pelos partidos comunistas nos países ocupados pelo Exército Vermelho, reconstituindo e ampliando o tampão defensivo do Império (a cortina de ferro, como o baptizou o Churchill); e a guerra-fria de manutenção do status quo, permitindo a recuperação da destruição da segunda guerra mundial, possibilitaram dar a ilusão de que o desenvolvimento sem limite das forças produtivas sociais era possível sob o comunismo.

A política de coexistência pacífica e de concorrência entre as duas formas do capitalismo — o capitalismo de Estado monopolista sob regimes ditatoriais, designado correntemente por comunismo, e o capitalismo individual concorrencial sob regimes democráticos, esse, designado por capitalismo — acabaria por comprovar a incapacidade do comunismo para concorrer com o capitalismo. O comunismo, por assim dizer, nasceu como produto da guerra e morreu como produto da paz. Embora tenha chegado a ocupar uma parte substancial do globo, com um mercado interno de muitos milhões de consumidores, o comunismo nunca pôde alcançar o nível de desenvolvimento do capitalismo, ainda que por alguns períodos tenha crescido a ritmos mais elevados que lhe permitiram recuperar parte do atraso; muito menos poderia ultrapassá-lo. A sua função, através duma férrea ditadura, foi trazer sociedades atrasadas para a plenitude da modernidade capitalista. As previsões do Khrushchov vangloriando-se de que numa década a URSS ultrapassaria o nível de desenvolvimento dos EUA, feitas perante um Nixon algo envergonhado, aquando da sua visita a Moscovo como vice-presidente do Eisenhower, em Julho de 1959, acabariam por não passar de fanfarronices, coisa em que os comunistas eram pródigos, julgando-se detentores do conhecimento certo e considerando-se os anunciados novos senhores do Mundo. O comunismo não dispunha em quantidade suficiente dos dois ingredientes indispensáveis para promover o desenvolvimento das forças produtivas sociais: capitais vultuosos e liberdade de iniciativa. Além de que a planificação centralizada nunca poderia desempenhar o papel dessa instituição milenar, pré-capitalista até perder de vista, que é o mercado.

Ainda hoje, os comunistas diabolizam o mercado, sem terem enxergado que ele constitui um dos maiores e mais duradouros progressos da humanidade. Não conseguiram compreender que o caos mercantil não é mais do que a forma social de adaptação à forma caótica como se organizam os muitos milhões de produtores e de consumidores, fruto do seu livre arbítrio como seres autónomos que se pretendem governar a si próprios, e que é ele que permite satisfazer da forma mais eficaz aquela dupla condição da existência dos seres humanos. Por isso, só podem diabolizar as crises de sobreprodução que periodicamente ocorrem. Não lhes dá para ver que apesar das crises o progresso é uma constante; que apesar das iniquidades da exploração dos trabalhadores assalariados e da troca desigual entre países o capitalismo é o modo de produção mais progressivo e próspero que a humanidade já conheceu, aquele que tem proporcionado o melhor nível de vida à maior quantidade de seres humanos como nenhum outro. Confundem deliberadamente as decisões políticas e as lutas de interesses entre Estados, reflexo das lutas de classes ao nível da superstrutura entre classes dirigentes de formações sociais distintas, com a relação de produção salarial existente na estrutura social, a mesma relação de produção que eles próprios tiveram de implantar porque não existia outra mais moderna. Aos olhos dos comunistas, contudo, que pode ser esta realidade imperfeita, que teima em não se conformar com os desejos de humanitários benfeitores com que eles se apresentam, se não obra do diabo? O seu discurso é por isso do mesmo tipo do dos fanáticos das religiões sagradas.

5-A distinção entre trabalho e força de trabalho e a identificação desta como sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado, com as propriedades que lhe atribuiu, foi talvez a grande e única originalidade do Marx em relação aos economistas clássicos. Em meu entender é uma concepção errada. A originalidade do Marx acabou constituindo um clamoroso erro. A força de trabalho não reúne as características das mercadorias: produtos produzidos para troca, para serem fornecidos para o consumo de outros. Um destes dias, gracejando com dois dos meus filhos dizia, para ilustrar o erro do Marx, que depois do almoço estaria em condições de lhes fornecer umas seis horas de força de trabalho; bastaria dizerem-me como desejavam recebê-la. Risada geral. Como facilmente se vê, o erro é clamoroso. A força de trabalho, a capacidade para produzir trabalho, não é produto que se possa fornecer a terceiros. Existe com o trabalhador, é a sua capacidade de existir como produtor. O que ele pode fazer com essa sua capacidade é produzir um produto, o trabalho. Este produto poderá vendê-lo e fornecê-lo ao comprador (desde que o comprador esteja interessado na utilidade concreta do trabalho que um trabalhador concreto for capaz de produzir). O trabalho pode ser fornecido para consumo na transformação de coisas ou de objectos do comprador (porque é essa a função do trabalho e a utilidade que o comprador espera obter dele quando o compra); a força de trabalho, a mera capacidade para produzir trabalho, a energia humana, essa não pode ser fornecida, faz parte do próprio ser que é o trabalhador, não se pode desprender dele e é por si consumida, ao contrário do trabalho que produz com ela.

O Marx estava condicionado pela chamada lei geral da troca das mercadorias: a famosa troca equitativa. A partir daí, sem questionar a plausibilidade desta premissa, só lhe restava, para poder justificar a génese do lucro e ultrapassar a invalidade da argumentação do Ricardo, encontrar uma mercadoria especial que tivesse a faculdade de fornecer mais do que continha, no caso, mais valor do que aquele que continha. Ora, nada fornece mais do que contém, seja do que for que contenha. É uma simples verdade necessária. Por outro lado, baseado naquela suposta lei geral, a força de trabalho, como qualquer outra mercadoria, só poderia ser vendida pelo seu valor. Nada, porém, permitia comprovar que a força de trabalho fosse vendida pelo seu valor. Aliás, a diferenciação salarial comprovava que não seria vendida pelo seu valor, porque o valor de uma tal mercadoria, sendo produzida pelo corpo humano vivo, não poderia variar tanto. Mas, se a força de trabalho era vendida pelo seu valor, o lucro só poderia constituir um “mais valor”, um valor suplementar produzido pela força de trabalho. Daí, na concepção marxista, o lucro ser tido como mais-valia e ser originado na produção e não na circulação, na troca das mercadorias, e, concretamente, na troca de trabalho vivo por trabalho passado.

Se abstrairmos da condição original de produtos naturais dos objectos e dos instrumentos de trabalho, as mercadorias reprodutíveis são apenas fruto do trabalho humano, que por sua vez é produzido pela força de trabalho ou energia humana. O trabalho, portanto, constitui a mercadoria universal, independentemente da forma sob que se apresente (trabalho vivo ou trabalho passado). Assim sendo, basta comparar a quantidade de trabalho fornecida pelo trabalhador e a quantidade que ele recebe como pagamento através das mercadorias que compra com o salário para ver que o lucro é essa diferença. Marx viu-o, e, aliás, foi assim que o explicou. Só que fornecer uma quantidade de trabalho e receber uma quantidade menor em troca entra no reino da trapaça, violando a sacrossanta troca equitativa. O Marx não foi capaz de romper com semelhante preconceito da ideologia burguesa, que representava a realidade com o que acontecia (ou, melhor, parecia acontecer) entre os burgueses. Persistiu atribuindo o lucro às propriedades mágicas dessa mercadoria especial que identificou como sendo a força de trabalho. Além disso, o trabalho vivo, erradamente identificado como sendo a substância do valor, não entrava na produção da força de trabalho, o que retirava qualquer valor a esta. Enfim, uma trapalhada pegada, em que o efeito da exploração — o valor a menos que o trabalhador recebia por troca da sua força de trabalho — era tomado como sua causa — o valor a mais que a força de trabalho tinha a faculdade mágica de fornecer para além do seu próprio valor. A versão marxista da teoria do valor das mercadorias e a sua concepção da génese do lucro estão pois erradas.

O trabalho não é a substância do valor, mas a mercadoria vendida pelo trabalhador; e a força de trabalho, a energia humana ou capacidade para produzir trabalho, não é a mercadoria vendida, mas a substância do valor. A realidade é o inverso da concepção marxista. A partir daquela substância, comum à mercadoria geral trabalho, é possível atribuir valor ao trabalho, ao seu custo de produção. O trabalho não produz valor; o que produz valor é a força de trabalho, a energia humana. O trabalho tem valor, o valor do custo da sua produção; e transfere esse seu valor para as mercadorias na produção das quais é produzido e consumido. Homogeneizando os diversos tipos concretos de trabalho, reduzindo-os a um trabalho geral e abstracto — no sentido de trabalho dividido reconstituído no trabalhador colectivo e exigindo uma quantidade média de energia para ser produzido — pode-se reduzir a unidade de medida da energia humana a uma unidade prática: o tempo de produção do trabalho. Deste modo, o valor do trabalho é facilmente medível e comparável, e o tempo de produção do trabalho pode, em termos práticos e expeditos, ser tomado para unidade de medida do valor das mercadorias. É o que os capitalistas fazem quando compram o trabalho vivo pelo tempo da sua produção e assim contabilizam o valor que acrescentam no processo de produção das suas mercadorias, procurando reduzir-lhes o valor do custo de produção unitário através do aumento da produtividade do trabalho (isto é, do aumento da quantidade das mercadorias produzidas com a mesma quantidade desse trabalho).

O problema do Marx foi não ter rompido com o princípio falacioso da troca equitativa, que representava a realidade como os burgueses a viam, e ter afirmado, em conformidade com ele, ser o valor de troca a forma de expressão do valor. Ora, o valor de troca, enquanto relação quantitativa entre mercadorias, e o preço, enquanto relação quantitativa entre estas e a mercadoria equivalente geral monetária, é expressão do capital empregado e da taxa de lucro esperada e dos muitos factores que a podem influenciar (a flutuação entre a oferta e a procura, a preferência dos consumidores por marcas e modelos, que a publicidade e o marketing tanto se esforçam por conquistar e por fidelizar, a pertinência — a necessidade e a oportunidade — duma mercadoria concreta para um consumidor concreto, as baixas e rebaixas dos preços para renovação dos stocks empatados, os saldos, as falências, a concorrência ou a capacidade de domínio do mercado, etc., etc., etc.), enquanto o valor do custo de produção é determinado por um único factor: o tempo de trabalho consumido desde a concepção até à venda da mercadoria (não apenas na produção do produto, mas desde a criação até à consumação do produto como mercadoria, o que acontece com o acto da troca, com a venda). O preço de uma mercadoria pode variar em função de alguns dos factores enumerados; o que não varia é o seu valor, o tempo de produção do trabalho que foi consumido na sua produção, desde a criação até à venda.

O valor das mercadorias, a dimensão do custo da sua produção, é o que permite deslindar o que ocorre na troca, independentemente das flutuações dos preços. Doutro modo, sendo os preços aparentemente tão aleatórios, não seria inteligível o que cada um cede em troca do que recebe dos outros. Para desvendar esse mistério, portanto, é necessário identificar a mercadoria universal a que possam ser reduzidas todas as mercadorias, e essa mercadoria é o trabalho humano; depois, é ainda necessário identificar a substância de que essa mercadoria é constituída, para com um padrão baseado nela tornar possível a sua medição, e o tempo de produção do trabalho pode tomar-se como unidade de medida prática e expedita para esse fim. A concepção marxista não identificava uma mercadoria universal, nem definia o conceito de valor das mercadorias, mas apenas a sua unidade de medida (o tempo de trabalho). Além do mais, transformava o trabalho vivo na substância do valor (através de um mecanismo nebuloso de conservar o valor do trabalho passado e de acrescentar valor novo), o que destituía de valor a força de trabalho, visto o trabalho vivo não participar na sua produção. Qualquer comparação era assim tornada impossível, e a génese do lucro só poderia residir na capacidade mágica da força de trabalho para fornecer mais valor do que o que continha. Não admira, portanto, o desinteresse dos ideólogos burgueses pela formulação duma teoria do valor das mercadorias; por um lado, a concepção marxista da origem do lucro transformava-o em coisa produzida naturalmente, o que era uma legitimação plenamente aceitável; por outro lado, criticar os erros dessa concepção faria correr o risco de pôr a nu a troca desigual que está na sua essência, o que era de todo inconveniente.

Em termos gerais, a troca das mercadorias é uma troca desigual. A concorrência nos ramos e a mobilidade dos capitais entre eles, procurando a melhor rentabilidade, é disso ilustrativo. Esses movimentos dos diversos capitais poderiam fazer com que a troca das mercadorias que não o trabalho vivo fosse num qualquer momento uma troca equitativa (embora correntemente nunca o seja, por exemplo, no caso das trocas de mercadorias oriundas de mercados diferentes, no caso de ganhos de produtividade não reflectidos em preços mais baixos enquanto a concorrência não anula esses ganhos, no caso da produção de alguns tipos de mercadorias estar onerada diferentemente por rendas ou por juros que a mobilidade dos capitais não anule, etc.), mas essa hipotética equidade seria meramente transitória, temporária e precária, visto eles serem originados precisamente pela desigualdade. Mesmo num mercado interno, na situação ideal de concorrência perfeita, de produtividade similar no interior de todos os ramos da produção, de adequação plena da oferta à procura e de capitais proporcionalmente onerados por rendas e por juros, o uso expedito da taxa de lucro sobre o capital empregado, e não sobre o capital consumido, cobrando juro sobre o capital fixo imobilizado, procederia à transferência de valor de uns para outros produtores, em função dos ciclos diferenciados de rotação dos diversos capitais, e faria com que num qualquer momento a apropriação não fosse equitativa, ainda que uma tal desigualdade fosse rotativa. Os desvios na apropriação da parte do valor não paga ao trabalhador, ou a diferenciação das taxas de lucro, que ocorrem na realidade em certa escala, porém, mobilizam os capitais e constituem objecto de estudo da economia, mas não chegam a afligir a classe dos detentores dos meios de produção. A troca do trabalho por outras mercadorias, essa, é garantidamente uma troca desigual, e é quanto basta. É nessa troca desigual entre capitalistas e trabalhadores que reside a génese do lucro.

A troca desigual entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados é a essência do modo de produção salarial ou capitalista. Para explicá-la não é necessário recorrer à intervenção de quaisquer artes mágicas ou de mercadorias especiais. Ela é possível porque a venda do trabalho constitui uma necessidade vital para o seu produtor, o trabalhador assalariado, para o qual a troca desigual é a condição da subsistência e o preço da liberdade. A forma social do trabalho assalariado, e a troca desigual em que se baseia, pode parecer um alto preço pago pelos trabalhadores em troca duma pequena parcela de liberdade, em muitos aspectos limitada e ilusória. Comparada com outras formas de cedência de parte do produto, e com a ausência de liberdade que as acompanhava, o preço pago por esta ilusória liberdade parece valer a pena. E a coisa não vai ficar por aqui, porque ainda agora a procissão vai no adro.

Nos meus textos apresento outra teoria do valor das mercadorias, outra concepção da génese do lucro e também outra concepção da revolução social. Porque são elaboradas a partir da crítica das concepções do Marx, não faltará quem as veja como críticas internas do marxismo. É questão de somenos importância. O pensamento errado do Marx foi o que de melhor se produziu. Porquê desperdiçar esse valioso contributo? Mas quem sou eu para ter a desfaçatez de proclamar os erros alheios e avançar novas propostas conceptuais? Apenas um crítico do Marx. Alguns discordam? Então, que venham de lá os argumentos em contrário e a refutação. De preferência, sob a forma de argumentos sólidos, não de desejos ardentes nem de lamúrias pungentes. Fico aguardando.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

O “Che” ou o mito do herói revolucionário romântico abnegado


Largos anos atrás, uma fita inesquecível de Bernardo Bertolucci, A Estratégia da Aranha, baseada no conto de Borges Tema do Traidor e do Herói, abordava a importância da construção do mito do herói para manter viva a chama da luta social, no caso a luta anti-fascista na Itália de Mussolini. A estória da construção do mito do herói Athos Magnani traz-me à memória a da construção do mito de Ernesto “Che” Guevara.

Ao contrário da personagem Magnani, Guevara não foi um traidor que depois de morto tivesse sido transformado em herói. Ele gozou em vida dos atributos do herói: o revolucionário romântico, deslocado da realidade, imbuído dum exacerbado voluntarismo, acreditando ser a revolução obra de um punhado de guerrilheiros apoiado pelo campesinato, que descendo às cidades tomaria o poder. Um pouco à imagem do que acontecera com os revolucionários da Sierra Maestra e a revolução cubana, de que fora um destacado protagonista, ao lado de Fidel e de Camilo.

As suas alucinadas concepções revolucionárias, o “guevarismo” ou “foquismo”, radicam na concepção da revolução permanente e generalizada como forma de ultrapassar os impasses na transformação económico-social a que conduzia o modelo do capitalismo de Estado monopolista em países pequenos e pouco povoados, onde a edificação duma indústria pesada como motor do desenvolvimento se mostrava totalmente inviável, e de romper com a opção dos soviéticos pela coexistência pacífica com o imperialismo americano. Criar muitos Vietnames, através da luta armada desencadeada por pequenos grupos guerrilheiros que atraíriam para a causa revolucionária as massas camponesas, parecia-lhe a forma de acelerar a prevista derrota do imperialismo ianque e de criar as condições para a construção do socialismo.

Até à sua conversão à ajuda soviética, o castrismo não fora bem aceite pela ortodoxia comunista, por não corresponder aos cânones da revolução proletária, encontrando-se muito mais próximo do maoismo, já então em litígio pela disputa da liderança do movimento comunista internacional. O guevarismo, então, fora até combatido e objecto de repúdio como via revolucionária destituída de qualquer credibilidade, porque baseado no puro aventureirismo. Depois do desaire no Congo, a incursão na Bolívia acabaria por conduzir o grupo guerrilheiro guevarista ao isolamento e à morte. Com uma particularidade: o herói revolucionário não morreu em combate; rendeu-se, esperando escapar vivo, e foi executado.

A construção do mito do “Che” em Cuba não envolve grande cinismo. Como Castro, Guevara fora um herói da revolução cubana vitoriosa. Apesar das divergências, a homenagem cubana terá tido tanto de necessária quanto de genuína. O mito que hoje perdura, porém, não se circunscreve ao herói da revolução cubana, mas estende-se ao revolucionário romântico sacrificado pela causa da revolução redentora e que dela se tornou mártir. Na falta de novos heróis vencedores, o romantismo desesperado de Guevara acabou preenchendo a lacuna existente no imaginário juvenil da rebeldia e da abnegação. Tal como o mito do Cristo redentor, oferecido em sacrifício para salvar os pobres e desvalidos, assim o mito do “Che”. O Cristo não teve um fotógrafo à altura nem um marketing tão oportuno.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

A democracia e a liberdade são bens frágeis e de valor inestimável. Aqui ou na Birmânia.


A democracia e a liberdade são bens frágeis e de valor inestimável. Aqui ou na Birmânia. Há que protegê-las. Mas antes de tê-las é necessário lutar por elas. Daqui ajuda-se, como se pode, juntando a voz a outras vozes que clamam contra a repressiva ditadura militar que as sonega.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Ainda não encontraram a competência? Chiça!


Nem sei porque escrevo sobre isto. Talvez porque este caso seja um espelho da incompetência que grassa pelo país e porque a indignação com tanta trapalhada não pôde ser contida.

Um maduro, que ainda por cima é o chefe da investigação policial do caso do desaparecimento da menina inglesa na Luz, veio a público tecer considerações sobre a orientação da investigação feita pelos seus colegas ingleses. É mais uma daquelas situações em que a polícia, em vez de investigar, se entretém a mandar umas bocas. Além de deselegante e inconveniente, a acusação raia o absurdo, porque certamente os seus colegas ingleses não têm por objectivo defender presumíveis criminosos.

O autor de tais declarações parece ter a seu crédito a solução do caso do desaparecimento da menina da Figueira, obtida pela confissão dos presumidos e condenados autores. Neste caso da menina inglesa, os seus métodos de solução dos crimes por obtenção de confissões parecem ter falhado. Para chegar à verdade e descobrir os criminosos não basta a convicção pessoal em indícios; é necessário a prova fundamentada. Na ausência de provas credíveis, o decorrer do tempo conduz ao desespero, daí a imponderação e o despautério. Não admira se amanhã aparecer um desmentido público destas declarações tão absurdas.

Este caso, depois de tanto alarido e de tantos atropelos, mostra-se de difícil solução, ninguém o contesta. Mais uma razão para que a sua investigação seja entregue a gente competente. Impõem-se, portanto, umas quantas perguntas. Será que a Direcção da Polícia Judiciária ainda não encontrou entre os seus quadros alguém qualificado para dar uma ajudinha? Será que é assim tão difícil encontrar a competência no seio da corporação? Não poderão, por acaso, desviar alguém de outros casos difíceis? E não acham que seja altura de mandar calar quem se deve ocupar com a investigação em vez de se entreter a mandar palpites e acusações gratuitas?

Há, certamente, polícias competentes, capazes de conduzirem investigações difíceis. De que estão à espera? Ainda não se aperceberam do risco do descrédito que paira sobre a Judiciária e sobre o país? Mostrem, ao menos, que são menos maus do que os ministros das polícias e dos tribunais. Não é difícil.


Adenda (04.10.2007).

O maduro foi demitido do cargo que ocupava. Era o mínimo que a Direcção da PJ poderia ter feito. Falta arranjar substituto capaz e reforçar a equipa de investigadores. Descontrolou-se, dizem. Pudera. Com o tempo a urgir e nada de novo a surgir, pouco restava se não utilizar fracos indícios como se fossem provas fundadas e assim formar a convicção da culpabilidade dos pais. Mesmo que esse venha a ser o desfecho do caso, tem de ser provado, não meramente indiciado. Até a investigação descobrir a verdade, são escusados os palpites.

Uma coisa, porém, saltou à vista, mesmo para leigos: como terá aquele investigador chegado à conclusão de que a suposta morte da menina teria sido acidental? Não tendo prova, pode supôr-se que tenha sido pela adivinhação. Tais dotes, porém, são o que menos interessa à verdadeira investigação policial; mas são elucidativos do desespero a que podem conduzir as dificuldades colocadas por um caso complicado.

Infelizmente, nas reacções ao desenrolar deste caso pululam as opiniões, que por infundadas não têm qualquer valor e se reduzem ao palpite. O povo tem direito à descoberta da verdade e à detenção dos criminosos. É trabalho da Polícia Judiciária seguir pistas, descobrir indícios consistentes e transformá-los em provas fundadas, para que seja feita justiça. Esperemos que a abnegação e a competência dos investigadores dêem os seus frutos.