AS DIFICULDADES ENFRENTADAS
PELA CRÍTICA TEÓRICA DO MARXISMO
José Manuel Correia
Marx é autor de uma vasta obra, que se estende da filosofia à crítica da economia política, a maior parte dela inédita em sua vida e publicada postumamente pelos regimes comunistas. A sua faceta mais importante prende-se com a de crítico da economia política, a que dedicou dois livros: Contribuição para a crítica da economia política (1859) e O Capital (cujo livro primeiro, dos três que o compõem e o único editado em vida do autor, foi publicado em 1867). Praticamente ninguém, até mesmo entre adversários, põe em causa a importância e o valor da obra de Marx, nomeadamente, quanto à narrativa descrevendo o funcionamento do capitalismo ou quanto à economia política e a outras questões que se pode considerar constituírem os alicerces do que mais tarde veio a ser a sociologia. A controvérsia em torno do marxismo, portanto, não reside nos aspectos gerais da obra de Marx, mas em aspectos específicos, nomeadamente, em relação à crítica dos discursos vigentes sobre a economia política capitalista e à teoria da revolução social, através das quais procurou fundamentar a profecia idealista de que o comunismo proletário seria o necessário sucessor do capitalismo, que anunciara na proclamação panfletária Manifesto do Partido Comunista (1848). Por esta razão, as divergências em relação às concepções marxistas não se confinaram ao campo do conhecimento sobre a realidade social e desde cedo foram transformadas em oposição ao projecto político que pretendiam fundamentar.
A narrativa marxista do capitalismo é exaustiva, descrevendo de forma clara, mas por vezes repetitiva, muitas das características que ele já evidenciava no início da fase de maturidade; e a sua crítica da sociedade capitalista é pungente e compreensível, pelo humanismo que dela ressalta, face ao gritante contraste entre as duras condições de existência proporcionadas pela organização industrial do trabalho e as que haviam caracterizado a anterior organização artesanal do trabalho na sociedade tributária. Como qualquer outra crítica da realidade empírica, porém, a crítica marxista da sociedade capitalista é totalmente infrutífera. A realidade não é passível de crítica; como se costuma dizer, a realidade é o que é. O que pode ser objecto de crítica são os discursos explicativos e legitimadores da realidade, demonstrando as suas eventuais inconsistências e apontando potencialidades de desenvolvimento da realidade que aqueles discursos não contemplem ou escamoteiem. A realidade está em permanente mudança, sem que os actores sociais se apercebam, como resultado de pequenas mudanças nas práticas que a constituem. É a crítica das representações dominantes acerca da constituição e significado da realidade que poderá conduzir a transformações ideológicas e políticas que progressivamente as alterem, as quais terão reflexos posteriores no desenvolvimento das estruturas sociais. As concepções marxistas sobre a realidade social e a sua transformação, e concretamente sobre a sociedade capitalista, infelizmente, são baseadas na indignação moral e no idealismo voluntarista, constituindo um discurso contra o capitalismo, ao invés de um discurso sobre o capitalismo.
A obra de Marx tem aspectos originais que constituem progressos valiosos do pensamento social, desde logo, sobre a organização social, em geral, sobre a sua evolução, mas sobretudo acerca dos fundamentos da sociedade burguesa capitalista. A crítica marxista dos discursos sobre a economia política, nomeadamente, sobre as funções desempenhadas pelo dinheiro, sobre a descrição dos objectivos da burguesia enquanto classe e sobre a função da acumulação no desenvolvimento da capacidade produtiva social, etc., tem também alguma valia. Sobre as questões basilares da economia política — como sejam o valor das mercadorias e a génese do lucro e da exploração — as concepções de Marx, porém, são destituídas de qualquer consistência. Os erros que cometeu residem em duas ordens de razões: por um lado, as suas conclusões contrariam uma ou mais das premissas em que se baseou, o que retira validade à argumentação; por outro lado, algumas das premissas adoptadas como verdadeiras não são plausíveis, o que o conduziu a conclusões falsas. Apesar disso, a generalidade das críticas feitas pelos mais diversos ideólogos burgueses às principais concepções de Marx não tem fundamento. Tal não é razão para conferir credibilidade científica àquelas concepções, mas provavelmente foram a inadequação das críticas dos ideólogos burgueses e a ausência de refutação convincente que permitiram aos adeptos atribuírem às principais concepções marxistas, durante tanto tempo, uma pretensa credibilidade científica.
Pelas repercussões sociais que viria a ter, o essencial da obra de Marx foi restringido à sua componente de projecto político. Este aspecto, contudo, é a parte menos teorizada, quedando-se por uma proclamação panfletária e por um ligeiro esboço acerca da concepção da revolução social. Neste campo, os erros são mais notórios do que os cometidos na crítica da economia política, porque as concepções não ultrapassam a mera especulação infundamentada, e as suas repercussões foram bem mais graves. Desde logo, a concepção marxista restringe a revolução social à sua componente de revolução política, como que esquecendo a lenta revolução económica que prepara as condições de necessidade e de possibilidade de eclosão da revolução ideológica e política. Depois, a própria revolução política é apresentada como forma de resolução duma hipotética contradição entre a necessidade de desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção dominantes, como se o desenvolvimento das forças produtivas fosse coisa autónoma e causa das relações de produção e não um seu efeito. Uma estranha interpretação ainda acabou convertendo aquela hipotética contradição na contradição de interesses entre a classe social exploradora e a classe social explorada de um determinado modo de produção social, e, no caso do modo de produção capitalista, entre a burguesia e o proletariado. A revolução social, portanto, foi concebida como revolução política e identificada, na época actual, com a revolução proletária. Foi esta errada concepção da revolução social que veio fundamentar, posteriormente, a profecia idealista inicial em que apontava o comunismo proletário como necessário sucessor do capitalismo burguês na organização social, e o proletariado como sucessor da burguesia na direcção da sociedade.
Nada na História ou na realidade empírica, porém, permite confirmar a concepção marxista da revolução social, nem que as revoluções ideológicas e políticas que culminam as lentas revoluções económicas sejam protagonizadas pela classe social explorada de um determinado modo de produção social. Nem os escravos nem os servos foram os protagonistas das revoluções sociais que acabaram com o esclavagismo e com a servidão. A História tem mostrado que as revoluções ideológicas e políticas são protagonizadas por novas classes sociais dirigentes, que emergem na sociedade pela instituição de novas relações de produção durante a longa revolução económica da produção social e que aspiram a conquistar o domínio ideológico e político para o adequarem aos seus interesses e representações. A errada concepção marxista da revolução social, portanto, constitui uma forma de tentar dar algum fundamento à profecia comunista proletária apresentada anos antes na proclamação panfletária, mas a História não permite conferir-lhe qualquer credibilidade. O único fundamento visível de uma tal concepção é o voluntarismo, o desejo de que assim venha a ocorrer, como forma de acabar com a imoralidade da inumanidade total que a exploração representa. Neste sentido, a crença na profecia marxista configura-se como mera crença pela fé numa verdade revelada. Ironicamente, o próprio Marx rejeitava o voluntarismo e a crítica das concepções burguesas da realidade baseada na moral; acreditava que as suas predições tinham um cunho científico, e que o socialismo que proclamava se distinguia do socialismo utópico ou idealista por ser um socialismo científico. Destituídas de qualquer credibilidade científica, resta às concepções marxistas fundamentarem-se no voluntarismo idealista.
A parte científica da obra de Marx, porque baseada em argumentação inválida, contendo grosseiros erros lógicos, e em premissas não plausíveis, está eivada de conclusões falsas. Durante longo tempo, tais conclusões foram aceites como conhecimento, mas não passam de representações invertidas da realidade social, em que os efeitos são confundidos com as causas dos fenómenos. Devido à complexidade dos temas e à aparente fecundidade dos conceitos, a sua obra não foi objecto de crítica exaustiva; os adversários limitaram-se a rejeitá-la, enquanto os adeptos a abraçaram. Deste modo, até hoje, o marxismo tem sido combatido principalmente no campo político, quer no âmbito da profecia idealista, quer no âmbito dos resultados da sua aplicação prática. A disputa tem estado confinada ao nível das opiniões, onde nenhuma conclusão sólida é possível. Mas a demonstração das falácias do marxismo é não só possível, através da crítica teórica das suas erradas concepções, como ainda necessária, para incentivar os trabalhadores assalariados a lutarem por melhores condições de vida, porque o seu futuro, ao contrário do que diz a profecia, não é risonho. Infelizmente, a crítica teórica do marxismo é alvo de muitas e variadas incompreensões, oriundas quer dos ideólogos burgueses, quer dos ideólogos comunistas, encontrando-se entre dois fogos. É compreensível que assim seja. Por um lado, porque ela não legitima os discursos burgueses apologéticos do capitalismo, e, por outro lado, porque também não legitima os discursos apologéticos do comunismo, tentando desmistificá-los a ambos. A crítica teórica das concepções marxistas permite compreender melhor a realidade social e demonstrar as inconsistências dos discursos apologéticos, tanto do capitalismo como do comunismo, mas não constitui a chave para a adivinhação do futuro, que é coisa que os actores sociais vão construindo no presente sem a consciência de o estarem fazendo.
Os adeptos marxistas, sejam militantes ou ex-militantes dos partidos comunistas, sejam simples simpatizantes ou companheiros de jornada dos comunistas, continuam apegados à profecia idealista que proclama o comunismo proletário como necessário sucessor do capitalismo. As suas posições políticas, baseadas na moral, derivam de um exacerbado espírito crítico em relação à exploração e às desigualdades de toda a ordem geradas pelos regimes capitalistas, como se fossem caso único ou o mais pérfido da História, e da crença, pela fé, de que o comunismo constitui um humanismo que acabará com semelhantes iniquidades. Persistem em tais crenças mesmo depois da falência da generalidade dos regimes comunistas e da evidência das atrocidades que todos cometeram, que mostraram sem margem para dúvidas a incapacidade do comunismo para se constituir como alternativa económica e política ao capitalismo. Continuam iludindo-se que com a reforma cosmética das velhas igrejas — os partidos leninistas de revolucionários profissionais, auto proclamadas vanguardas iluminadas para a condução das massas ignaras na insurreição vitoriosa e, depois, na edificação da nova sociedade — o comunismo reeditado estará ao abrigo dos chamados erros e desvios que conduziram à sua derrocada generalizada. Apesar de se orientarem pela mesma ideologia e de continuarem agarrados à mesma concepção totalitária da organização social que despreza a liberdade individual, os adeptos querem fazer-nos crer que também eles são outras pessoas, que aprenderam com os erros que outros cometeram, e que a sociedade que propõem constitui a verdadeira e genuína alternativa ao capitalismo. Como todos os fiéis devotos, têm plena legitimidade para continuarem a iludir-se, mas não podem pedir-nos que acreditemos em semelhantes patranhas, sob pena de se cobrirem de hilariante ridículo.
Existem variadíssimos tipos de adeptos, uns mais crentes, outros mais enduvidados, e outros que tendo abandonado as igrejas permanecem orgulhosos do seu passado e mantêm ainda a esperança na construção de uma alternativa ao capitalismo. Alguns destes últimos, quando criticados por permanecerem orgulhosos de um passado de militância comunista que não deveria constituir qualquer motivo de orgulho (a não ser em relação à actividade anti-fascista que possam ter desenvolvido, mas até esta maculada pelo sectarismo e pela hipocrisia que desde sempre caracterizaram a acção dos comunistas) desempenham o papel de vítimas ofendidas. Confundem a inutilidade da crítica do passado pessoal, porque é injusto julgar as pessoas pelo que foram sendo, com a legitimidade da crítica do que em cada momento do presente persistem aprovando do seu passado. Atitude oportunista, que pretende aproveitar o que de bom teria tido o passado de comunistas sem arcarem com a penalização que a actividade comunista acarreta no presente, e reveladora de que o seu corte com o comunismo ainda não foi efectuado. O passo maior que deram foi migrarem para a social-democracia à moda do Mário Soares — um dito socialismo democrático, que nem o próprio Soares sabe o que seja, e que não passou de rótulo distintivo face à social-democracia reformista com raízes numa forte ligação ao movimento sindical, adoptado por um político ultra oportunista, vaidoso e ambicioso, sem qualquer ligação ao movimento operário, mas imbuído de um velho complexo de inferioridade, real e bem notório, em relação ao invejado rival Álvaro Cunhal — constituindo-se como sua ala de esquerda ou consciência crítica. Outros, um pouco mais radicais, acolheram-se nesse albergue espanhol do comunismo de passado apagado e de futuro branqueado que dá pelo nome de Bloco de Esquerda, e continuam apostados em renovar o comunismo. Outros, ainda, mantêm-se numa situação de independência ou de companheiros de jornada ocasionais dos comunistas. Todos eles saíram da igreja por uma qualquer desavença táctica, metodológica ou organizativa, ou por divergência menor em relação à cartilha, mas continuam indo às procissões; abandonaram o proselitismo de outrora, mas continuam crentes na profecia messiânica marxista do comunismo proletário e na sua pretensa credibilidade científica. Aceitar que acreditaram num logro teórico constituído por um rol de falácias e de patranhas infantis, camuflado por um humanismo idealista, é para eles demasiado. Temem a desilusão que destituiria de sentido parte importante das suas vidas e o ridículo de que se cobririam pela sua dantes reivindicada condição de vanguardas iluminadas.
Entre nós, resta um pequeno grupo de adeptos, não sei se abarcando mais do que os membros de um casal, que desenvolve uma meritória actividade mantendo na Internet, há vários anos, um fórum de discussão. Também eles são ex-militantes comunistas, depois fundadores do grupo dos que pretendem renovar o comunismo, do qual parece se terem ido afastando. Ao que se conhece das suas posições, foram críticos dos regimes comunistas sendo ainda militantes no activo, não aceitando que aqueles regimes pudessem estar construindo o comunismo partindo duma base económica atrasada. Pelo que deixam transparecer no seu blog e naquele fórum, admitem que algumas concepções marxistas podem estar erradas, mas apenas admitem, sem que se conheça qualquer sua crítica fundada. Distinguem-se também por criticarem os que persistem acreditando na revolução política comunista proletária e que concebem a instauração de novas relações de produção a partir da superstrutura, do aparelho do Estado. Mantêm-se apegados a uma concepção idealista e voluntarista da transformação social, propugnando a necessidade de se estabelecerem novas relações de produção, as quais tornariam possível a almejada revolução política. Incompreensivelmente, ainda não se aperceberam de que o estabelecimento de novas relações de produção não ocorre por qualquer idealismo voluntarista empenhado em transformar o Mundo, mas pelo egoísmo prático dos actores sociais ao aproveitarem as oportunidades que possam ir surgindo na realidade empírica e que mostrem capacidade para se desenvolverem.
A exploração de umas classes sociais por outras é uma constante das sociedades produtoras, e tem uma história já bem antiga. E se a História não é mais do que a narrativa e a interpretação das lutas das classes, sendo o comunismo uma sociedade sem classes, logo, sem lutas de classes, a instauração da sociedade comunista constituiria o fim da História. Com base naquele desejo, legítimo e humanitário, Marx anunciou o fim da História muito antes do que Francis Fukuyama o fizesse. Apesar de tão peremptórias predições, parece que a História terá ainda um longo futuro pela frente.
Almada, 25 de Agosto de 2007.