quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Avaliação dos professores e insucesso escolar


O país depara-se com um grave problema no sistema de ensino: elevadas taxas de abandono e de insucesso. A escolarização e o sucesso escolar são mesmo, desde há muito, um dos nossos mais graves calcanhares de Aquiles. Nesta questão, estamos ao nível dos países subdesenvolvidos mais desenvolvidos, o que é uma vergonha. Dantes, o grande culpado era o salazarismo (ainda que dentro das possibilidades do país o regime tenha envidado esforços para aumentar o número de escolarizados, mesmo à custa da redução da escolaridade obrigatória para três anos); veio o 25 de Abril e, passados os primeiros anos, o mal voltou a atacar em força: à medida que tem aumentado a oferta educativa, têm aumentado proporcionalmente o abandono e o insucesso. Quase duas décadas depois da reforma educativa de 1989, parece ainda não terem sido encontradas as razões para semelhante calamidade, e todas as tentativas dos sucessivos governos para a debelar têm resultado em fracasso. Nem fazer depender da frequência escolar a concessão do rendimento mínimo garantido tem contribuído para atenuar suficientemente esta grave situação.

Em vez de identificarem os problemas e de lhes estudarem as causas, para tentarem encontrar as soluções mais adequadas, os actuais governantes repetem as mesmas medidas, comprovadamente inadequadas, e ainda arranjam um rol de outros problemas, tomando como alvo os professores, aqueles que nas escolas arcam com todas as dificuldades. Por este facto, as suas políticas sobre a educação têm sido um avolumar de problemas, o que só agrava a situação e inviabiliza o ataque ao problema principal. Os actuais CEF (cursos de educação e formação) pouco diferem do 9ºAno+1, dos Currículos Alternativos e de outras trapalhadas vindas dos tempos da Ana Benavente (aliás, a responsável, enquanto secretária de Estado, pela inqualificável reforma educativa em vigor, que o David Justino tentou remendar em vão), e o programa Novas Oportunidades tem-se revelado uma caricatura da formação de qualidade que a escola deveria proporcionar como segunda oportunidade aos que a abandonaram há mais tempo. Sem qualquer pudor, os mentores destas medidas usam o aumento das taxas de escolarização que temporariamente proporcionam como se fosse sinónimo de redução das taxas de abandono e de insucesso.

Existem na escola pública graves problemas de motivação e de indisciplina, que não favorecem o sucesso escolar; e, na sociedade, o papel da escola como instrumento de mobilidade social ascendente tem vindo a ser desvalorizado. Tem crescido a sensação de que a frequência e o sucesso escolares, por si sós, não garantem o emprego ou não proporcionam melhores níveis de remuneração, e que até entre os detentores dos níveis de escolaridade mais elevados tem aumentado o desemprego. Constata-se que a escola pública tem perdido capacidade de disciplinar e de motivar e que a sociedade não tem proporcionado emprego ou melhores remunerações a grande parte dos frequentadores da escola. Alguns destes problemas derivam da retirada de autoridade aos professores, das modas pedagógicas centradas no aluno e da maior heterogeneidade do público escolar devida à desorganização familiar e à escolarização de nacionais de primeira ou de segunda geração oriundos de culturas não escolarizadas, sem apreço pela escola ou dominando mal a língua. Mas outros derivam da má concepção, organização e gestão curriculares, desde o currículo unificado até ao número exagerado de disciplinas e aos programas ambiciosos, extensos e inexequíveis que não passam de listagens de conteúdos desajustados das necessidades e das possibilidades dos alunos a que se destinam, e que contribuem para agravar a desmotivação, o abandono e o insucesso.

Um caso que ilustra exemplarmente a incompetência na concepção e na gestão curriculares, assim como a insensatez e a demagogia reinantes nas políticas educativas, foi a redução da duração das aulas de 50 para 45 minutos, rompendo com uma tradição de muitas décadas de resultados comprovados. Esta medida, que se mantém em vigor, foi justificada com a argumentação de que aulas de 45 minutos permitiriam reduzir a irrequietude dos alunos e que aulas de 90 minutos (dois tempos lectivos de 45 minutos cada) seriam mais rentáveis didacticamente com programas mais orientados para actividades práticas e experimentais. A justificação apresentada não passou de mero pretexto, visto a causa real da redução ter sido a introdução de mais duas disciplinas supérfluas num currículo sobrecarregado, sem aumentar a já extensa carga horária semanal. O resultado foi a redução efectiva do tempo destinado ao ensino-aprendizagem, que no caso das aulas de dois tempos lectivos chega aos 20 minutos (visto a anterior duração destas aulas ser de 110 minutos), e a eliminação de alguns intervalos entre aulas, que ficaram reduzidos a dois intervalos maiores, um nas manhãs e outro nas tardes, sem quaisquer benefícios quanto à irrequietude ou à indisciplina na sala de aula e com manifesto prejuízo para a pontualidade e para a qualidade das aprendizagens. Mais este leviano experimentalismo tem consequências para a diminuição da qualidade das aprendizagens e acaba desvalorizando a escola, mas os seus mentores gozam da maior impunidade, como é habitual.

Depois do congelamento da progressão na carreira, da desvalorização dos salários, do não pagamento das aulas de substituição e das alterações drásticas nas condições de aposentação, a actual equipa da educação resolveu-se por novo ataque aos professores, desta feita através da avaliação do desempenho. Desde sempre, os professores têm tido os seus desempenhos avaliados, como toda a função pública. Poder-se-á argumentar, não sem razão, que essa avaliação não tinha fiabilidade e era desprovida de credibilidade. Esperar-se-ia que um novo modelo, mais rigoroso, viesse permitir garantir-lhe credibilidade, e que um maior peso do resultado da avaliação para a progressão na carreira pudesse contribuir para a melhoria da qualidade do trabalho docente. Ao fazer depender a progressão na carreira não apenas da antiguidade e da qualidade do trabalho docente, como até aqui, mas também da abertura de um número anual de vagas em cada escola, o governo mostra não ter como principal objectivo a melhoria do desempenho dos docentes, já que com a contingentação é claramente procurada a contenção do crescimento da massa salarial do sistema de ensino. Dependente duma avaliação mais rigorosa e sujeita a contingentes anuais, fixados segundo as necessidades orçamentais, a progressão na carreira será mais lenta, com os inerentes reflexos na contenção do crescimento da despesa.

Medidas administrativas diversas (como a limitação do número de vagas ou o puro congelamento das progressões, por exemplo), muito mais expeditas, menos burocráticas e com menos implicações negativas na cooperação que deve presidir ao trabalho docente (que a partir de agora passará a ser regido pela competição, com todas as implicações negativas para a qualidade do ensino que daí resultarão), tomadas por este governo, produziram os mesmos efeitos de contenção da progressão da massa salarial na despesa com o ensino, ainda que gerando uma onda de descontentamento sem precedentes. Através do meio mais insuspeito da avaliação do desempenho, e introduzindo a contingentação anual, o governo pretende atingir objectivos económicos similares sem gerar os descontentamentos políticos conhecidos. Esta, contudo, parece não ser a única finalidade que pretende atingir com o novo modelo de avaliação, pois que também um outro objectivo, quiçá ainda mais importante, contamina a invocada pretendida melhoria da qualidade do trabalho dos professores: a redução das elevadas taxas de abandono e de insucesso.

Sujeitos a avaliação permanente e mais rigorosa, é de prever que os professores se esforçarão mais para melhorarem as suas qualificações, para prepararem mais cuidadosamente as aulas, para proporcionarem climas de aprendizagem mais propícios, para se preocuparem mais com a assiduidade, para se envolverem noutras actividades que também lhes têm sido atribuídas; tudo isso faz parte dos seus deveres, influencia a qualidade do seu trabalho e deverá ser objecto de avaliação. É aceitável que a progressão na carreira dependa também duma avaliação do desempenho fiável; já não é justificável que seja condicionada pela fixação arbitrária, não negociada, de contingentes anuais. Mas é de todo inaceitável que a contingentação, que deveria respeitar à progressão, se refira aos resultados da avaliação, impedindo que as qualificações atribuídas ultrapassem quotas previamente fixadas para cada uma das menções de melhor desempenho (excelente e muito bom), as quais terão de ser obrigatoriamente alteradas pelos avaliadores até que não excedam as quotas máximas fixadas para cada uma, o que subverte a credibilidade de qualquer avaliação.

Talvez por incompetência, foi estabelecida uma inexplicável confusão entre os objectivos da avaliação — atribuir valor ao desempenho profissional dos docentes — e uma das funções que a avaliação pode desempenhar — fundamentar decisões quanto à progressão na carreira — e em vez da contingentação da progressão, e da seriação dos candidatos por recurso à conjugação do resultado da avaliação com outros factores, foi contingentada a avaliação e deformado o seu resultado pela introdução de factores sem relação com o desempenho docente. Espera-se, ao menos, que um tal absurdo, proveniente de qualquer insanidade, não venha a ser extensivo à avaliação do desempenho dos alunos. Doutro modo, um destes dias ainda teremos as classificações de exame a serem previamente fixadas por quotas!

O mais grave deste modelo de avaliação, porém, não é o seu uso para condicionar a progressão dos docentes na carreira. Ao introduzir como objecto da avaliação factores que escapam totalmente ao controlo dos docentes, os quais não integram o seu trabalho e têm com ele apenas uma relação indirecta, como sejam os resultados do desempenho dos alunos, o que é pretendido com este modelo de avaliação parece não se restringir a reduzir custos nem a aferir a qualidade do desempenho profissional dos docentes. Por isso, é legítimo questionar se a introdução do resultado do desempenho dos alunos como objecto da avaliação do desempenho dos professores não tem também como objectivo a redução administrativa das estatísticas do insucesso escolar. Só com este objectivo não explicitado, e totalmente desprovido de sentido, se poderá compreender que o aproveitamento que os alunos fazem do trabalho dos professores constitua objecto da avaliação do desempenho dos docentes.

As condições de retenção, que ditam o insucesso escolar, têm vindo progressivamente a ser alteradas: no ensino básico, passou-se de duas para três negativas e adicionaram-se outras condicionantes burocráticas que progressivamente foram destituindo a avaliação do desempenho dos alunos de qualquer credibilidade. O resultado tem sido o acumular de lacunas e o abaixamento da qualidade das aprendizagens, o que tem desmotivado os professores, que a cada ano têm vindo a ser confrontados com a ausência de mais competências de pré-requisito, que deveriam ter sido adquiridas no ano anterior. Tais medidas administrativas também não têm conseguido fazer baixar significativamente as estatísticas do insucesso, mas têm contribuído activamente para a baixa da qualidade das aprendizagens escolares. Este factor determinante, que as estatísticas não conseguem expressar, acabará, mais tarde, por reflectir-se negativamente na qualidade e na produtividade do trabalho com que estes alunos virão a contribuir para a sociedade.

Confrontada com uma situação insustentável, mas desprovida de competência para a enfrentar adequadamente, parece nada mais ter restado à actual equipa governamental da educação se não adoptar a medida mais drástica, neste caso, fazer depender a progressão dos docentes na carreira também da redução das taxas de insucesso dos alunos. Doravante, os professores estarão condicionados nas suas avaliações do desempenho dos alunos, e é de prever que muitos não resistirão a fazê-las depender dos efeitos negativos que delas possam resultar para a sua progressão na carreira. Mantendo-se profissionais íntegros, realizando avaliações fiáveis, sofrerão as penalizações inerentes; cedendo à coacção, aliviarão as estatísticas do insucesso, camuflando a realidade.

Este modo trauliteiro de tentar resolver uma grave situação através de artifícios administrativos e, agora, pela coacção económica, só poderia provir de gente incompetente na gestão do sistema de ensino, apologista do expediente trafulha, sem apreço pelo rigor ético, dotada duma mentalidade perversa e de carácter autoritário. Estes mesmos sintomas são os que se notam no novo modelo de gestão das escolas, que a pretexto da instauração de lideranças fortes, personificadas no director escolar, procura sujeitá-las aos desígnios arbitrários do ministério, que passa a poder destituir os directores através de mero despacho governamental, sem necessidade de qualquer processo de inspecção do seu desempenho e ultrapassando os órgãos de administração das escolas que os nomearam. O novo modelo da avaliação do desempenho dos docentes, a nova gestão personalizada e o estabelecimento de metas anuais de redução do insucesso acarretam o risco de transformarem as escolas, já de si organizações complexas, em locais de trabalho perigosos para a saúde dos docentes.

Antes de tecerem elogios ao espírito reformista da ministra e dos seus ajudantes, os abalizados comentadores da nossa praça, que não se cansam de invocar preocupação com a baixa qualidade das aprendizagens escolares, deveriam procurar inteirar-se sobre o que verdadeiramente está em jogo e o que daí poderá resultar a médio prazo.