sexta-feira, 25 de abril de 2008

25 DE ABRIL, SEMPRE!

25 de Abril, sempre! Que nunca se transforme em qualquer Maio.

Francisco Martins Rodrigues: o marxismo-leninismo para além do estado puro


Nos primeiros meses de 1977, durante os trabalhos preparatórios e no decurso das discussões no 2.º Congresso do PCP(R) (Partido Comunista Português (Reconstruído)), um pequeno partido esquerdista marxista-leninista-maoista cuja direcção integrei, apercebera-me de que o último dos dinossáurios do marxismo-leninismo, Francisco Martins Rodrigues (FMR), se caracterizava por um fraco nível teórico e por muito pouco rigor estratégico e táctico. Escrevia, e muito, mas a sua prosa era ressequida, e mesmo espremida dela brotava muito pouco sumo. Embora fosse o redactor do projecto de resolução política veiculando as posições da direcção, recordo-me de que não dominava as teses saídas do 7.º Congresso da Internacional Comunista nem a concepção dimitrovista da “revolução democrático-popular”, que constituíam o suporte teórico em que se fundamentava a nova concepção estratégica em vias de ser aprovada pelo partido.

Por diversas vezes, Diógenes Arruda Câmara, um destacado dirigente do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) que então tutelava o PCP(R), teve necessidade de clarificar o espírito dessa etapa da revolução, em seu entender justificada na época de domínio mundial do imperialismo, durante a qual fracções nacionalistas e não monopolistas da burguesia teriam um papel progressista a desempenhar ao lado do proletariado. Eu próprio, com leituras frescas sobre o assunto, com algum sarcasmo ajudava à festa. Aliás, foi a displicência na forma de criticar a etapa dimitrovista da “revolução democrático-popular” — apontando-lhe o carácter espúrio em relação à ortodoxia marxista-leninista e os paralelismos que via entre ela e a “revolução democrática e nacional” adoptada pelo PCP (Partido Comunista Português), conceitos que para mim apenas diferiam na designação — que provocou o surgimento um pouco intempestivo da animosidade do Arruda para comigo. A sua matreirice política levá-lo-ia a estender-me uma casca de banana, e eu, pisando-a, estatelar-me-ia aparatosamente.

No campo do esquerdismo marxista-leninista-maoista, desde há muito a revolução social em Portugal era caracterizada como uma “revolução democrático-popular”. A seguir ao “25 de Abril”, apenas o grupelho designado por PCdeP(M-L) (Partido Comunista de Portugal (Marxista-Leninista)), dirigido pelo Heduíno Gomes, passara a defender a etapa socialista da revolução, trocando-a ao fim de uns dois anos por uma "revolução nacional-democrática" justificadora do seu descarado alinhamento político com a burguesia. O MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado), o mais radical e folclórico dos grupos maoistas, por seu lado, mantinha-se fiel à “revolução democrático-popular”, ainda que agitando uma ambígua “revolução popular” e o correspondente “governo popular”. Apesar da distinção estratégica, estes dois grupelhos caracterizavam a sua acção pelo anti-social-fascismo, e tomando o PCP como inimigo principal desenvolviam uma política marcadamente anti-comunista, em aliança com toda a direita, da mais reaccionária à social-democrata. Fora do campo do maoismo, a revolução socialista era também defendida pelo grupo radical guevarista PRP-BR (Partido Revolucionário do Proletariado-Brigadas Revolucionárias), então com forte influência no COPCON, que concebia a revolução como processo rápido e linear constituído por golpes audaciosos desferidos por grupos de aventureiros armados, totalmente desligados das massas, apesar da sua farta retórica basista, assim como pelo grupo da salgalhada socialista-católico-basista MES (Movimento de Esquerda Socialista), sem qualquer expressão no movimento operário e popular.

Foi neste contexto que defendi, no citado Congresso do PCP(R), duas teses originais: que a revolução social em Portugal se encontrava na sua etapa socialista, e que o movimento operário e popular atravessava uma fase de refluxo. Tais concepções entravam em choque com a estratégia e a táctica adoptadas por aquele partido e pela generalidade dos grupos marxistas-leninistas-maoistas, assim como punha em cheque a estratégia adoptada pelo PCdoB. Como logo se comprovaria, a ruptura clara com as concepções estratégicas reformistas, que constituíam um desvio em relação à ortodoxia revolucionária marxista-leninista, e com o radicalismo táctico voluntarista, que caracterizava o espontaneísmo esquerdista, dominantes no seio do maoismo, não se mostraria adequada, porque não proporcionava a serenidade necessária para a discussão de questões tão importantes. Não admiram, portanto, a animosidade com que as minhas teses foram acolhidas e os epítetos de esquerdista na estratégia e de direitista na táctica com que fui mimoseado na luta ideológica e política que travei naquele partido aquando da definição da sua nova linha política.

Naquela época, eu procurava compreender a essência revolucionária do marxismo-leninismo e aplicá-la às condições concretas da crise política que se vivia em Portugal. Julgava que assim seria possível ultrapassar tanto o reformismo estratégico que caracterizava a política do PCP como o radicalismo táctico inconsequente do PCP(R). Pensei até que encontraria apoio entre gente que apregoava tão veementemente o seu fervor revolucionário. Pura ilusão. De qualquer modo, depois de abandonar o partido, em Fevereiro de 1978, por uns tempos ainda esperei que a contestação às concepções adoptadas pudesse surgir da parte do dinossáurio FMR, que apesar dos cargos subalternos que desempenhava arregimentava um bom número de seguidores fiéis e de admiradores indulgentes. Julguei que a sua maior experiência e maturidade o levasse a cair em si, a ganhar coragem para romper com o Arruda e a reconhecer o desvio da “revolução democrático-popular” em relação à ortodoxia marxista-leninista que aparentava perfilhar.

Enganar-me-ia redondamente, uma vez mais. A contestação da linha vigente, afinal, ocorreu pela direita, através de pessoas que dois anos antes a defendiam e se tinham destacado a combater empenhadamente as minhas teses: gente jovem, na sua maioria ex-estudantes oriundos de extractos sociais não operários, sem grande experiência política e que até aí se caracterizara pelo radicalismo, alguns até pelo aventureirismo e pela anarqueirada. As insuficiências teóricas do último dinossáurio, o seu pouco rigor em matéria de estratégia, o seu costumeiro radicalismo táctico e a sua comprovada incapacidade para avaliar o estado de ânimo do movimento operário e popular e a relação das forças em presença não lhe possibilitavam compreender a situação política real; e a subalternização a que o votara a tutela do Arruda sobre o partido inibia-o de elaborar e, mesmo que pudesse vir a tê-la, de assumir qualquer posição divergente das concepções dominantes.

Desde sempre, antes e depois do 25 de Abril, a actuação política do último dinossáurio fora caracterizada por um estranho paradoxo — a adopção de estratégias frentistas e a opção por tácticas radicais, para através delas levar a cabo uma ambígua “revolução popular” ou “democrático-popular” — atribuindo a umas míticas “massas populares”, enquadradas por uma qualquer organização frentista ou partido popular, por sua vez dirigidos pelos comunistas, organizados num comité ou num pequeno partido de quadros, a capacidade para derrubarem a burguesia e para encetarem as tarefas socialistas que se impunham para a abolição do capitalismo. Como se comprovou, nem os longos anos passados na cadeia lhe tinham propiciado o tempo de reflexão necessário para compreender os erros ideológicos e políticos que cometera na sua anterior intervenção política.

Este “vanguardismo popular” conduzira-o, após a ruptura com o PCP, á fundação da FAP (Frente de Acção Popular) e ao guerrilheirismo castrista-guevarista, e, depois do 25 de Abril, à criação da UDP (União Democrática Popular) e ao radicalismo esquerdista. Como outros, eu sempre me opusera à existência da UDP, a sua última criação frentista, e defendera a sua extinção, com a integração gradual e selectiva dos seus melhores quadros no PCP(R), após a legalização do partido e a realização de iniciativas conjuntas que fossem proporcionando uma identificação pública dos objectivos das duas organizações e possibilitando a transferência para o partido do apoio de massas que aquela organização granjeava. Apenas por esse facto seria difícil o último dinossáurio passar a defender as minhas concepções ou outras parecidas; esperar que partisse dele a contestação à linha do partido não passou de mais uma ingenuidade.

Seria necessário o Diógenes Arruda Câmara abandonar a direcção do PCP(R) entregue a si própria, em Outubro de 1979, devido ao seu regresso ao Brasil (onde viria a falecer pouco tempo depois, por causa de um enfarte que o seu coração doente não aguentou, em 25 de Novembro, precisamente no dia do regresso do exílio de João Amazonas, outro dirigente mítico do PCdoB), e acontecer mais um movimento de oposição à linha do partido, que levaria à expulsão da fracção Francisco Melro-Amadeu Ferreira, depois da anterior expulsão da fracção João Moreira-João Carlos Espada, para que em 1983 o último dinossáurio encabeçasse a contestação ao que passou a designar por “linha de direita”, que caracterizou como “centrismo” estalinista.

Embora tarde, o último dinossáurio apercebera-se por fim do carácter “centrista” da “revolução democrático-popular” que ele próprio ajudara a instituir. Aquela estratégia conduzia a tácticas errantes, oscilando entre o habitual radicalismo delirante e o reformismo conformista, caminhando progressivamente para a direita à medida que a agitação e a propaganda não davam os frutos imaginados. Foram as guinadas tácticas resvalando para um reformismo inconsequente, mais do que a estratégia errada, que levaram o último dinossáurio para a oposição. Suspeitando das habituais limitações à discussão interna, partiu para a luta constituído com os seus seguidores em fracção organizada. Temendo a típica reacção autoritária da fracção maioritária, tratou de atacar também o arbítrio do “centrismo” estalinista na resolução administrativa das divergências pela sanção disciplinar.

Da ruptura com o PCP(R), então já designado PC(R) (Partido Comunista (Reconstruído)), nasceria o seu “Anti-Dimitrov”, a denúncia do que qualificou como “centrismo” estalinista, que consistiria no esbatimento da demarcação da política de classe do proletariado face à dos seus aliados próximos. Um tal “centrismo” era o que ele vinha defendendo desde o 25 de Abril, apesar das retóricas radicais, mas esse facto também não o incomodou. Este seria apenas o penúltimo dos estádios da sua lenta, mas contínua, evolução política e ideológica. O estádio final seria atingido após a derrocada generalizada dos regimes comunistas, quando passou a qualificar a revolução proletária russa de 1917 como uma “revolução burguesa de novo tipo”, dirigida pela burguesia burocrática.

A oposição do aventureirismo guerrilheiro castrista-guevarista ao oportunismo reformista do PCP granjeara-lhe o prestimoso título de revolucionário consequente; a concepção da frente como guarda avançada e a subalternização do partido como retaguarda dirigente fê-lo ganhar a merecida qualificação de grande teórico; a defesa intransigente do estalinismo puro e duro e a passagem ao seu repúdio, identificado como “centrismo”, garantira-lhe o honroso título de ortodoxo; sem falar no resto, que é secundaríssimo, o seu percurso ideológico e político sinuoso permitira-lhe ser apontado como exemplo de coerência.

Restava-lhe atingir o nirvana. Conseguiu alcançar o êxtase do estádio da perfeição negando o carácter comunista às revoluções proletárias conhecidas. Afinal, o comunismo nunca existira (nem ao menos a sua antecâmara, o socialismo): a verdadeira revolução comunista proletária estava por fazer. Assim lhe ditou a sua passagem da ortodoxia para a defesa dum marxismo-leninismo para além do estado puro. Agora, que se libertou das leis da vida, paz à sua memória.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

O sindicalismo vigente: o caso dos professores


Milhares de professores saíram à rua por esse país fora em manifestações parcelares, e mais de 100 000 juntaram-se na grande manifestação do passado dia 8 de Março, em Lisboa. Foi muita gente, tanta como nunca se vira; gente sensata, comedida, de todos os quadrantes políticos, que evita o espalhafato e que encara a vida profissional também como sentido de missão. Algo de muito grave foi acontecendo para que dois terços de uma classe profissional tão diversa nos seus modos de encarar a vida e a política saísse à rua em protesto. Algo de muito importante fez com que gente que nunca se manifestara nem pensara vir a fazê-lo ganhasse coragem e saísse à rua gritando a sua indignação.

Depois do congelamento das progressões na carreira, da perda de poder de compra pela desvalorização dos salários, das alterações drásticas nas condições da aposentação, da sistemática campanha de desprestígio pessoal e dos sucessivos ataques à sua dignidade profissional, movidos insensatamente pelo governo, a imposição de um burocrático modelo de avaliação do desempenho foi a gota de água que fez transbordar o copo da paciência desta gente e despoletou a onda de indignação a que todos assistimos. Após tamanha manifestação de unidade e de veemência do protesto, nada poderia ficar como dantes, e o governo tiraria dali as necessárias ilações.

Nunca os sindicatos tiveram tão inequívoca manifestação da vontade dos trabalhadores de um sector de actividade. No calor da emoção, essa vontade publicamente expressa ia além das cautelas das direcções sindicais, que até então tinham centrado a recusa do novo modelo de avaliação em pouco mais do que na sua inexequibilidade nos prazos pretendidos pelo governo. Esperava-se que as direcções sindicais cavalgassem a onda de indignação dos trabalhadores, que lhes concedera uma nova capacidade negocial, reformulassem a sua actuação, a começar pelo reforço da campanha de recusa da implementação do novo modelo de avaliação, e elaborassem propostas concretas e novos apelos à negociação. Tinham ainda a seu favor a importância do terceiro período para a concretização do ano lectivo e o mau estar que a inflexibilidade da ministra já provocava na opinião pública.

Na vida, porém, há coisas do arco da velha. Numa reviravolta impensável, de um momento para o outro, as direcções sindicais acabaram por chegar a um “entendimento” com a ministra, a própria, que pela importância das coisas fora em pessoa às negociações. O “entendimento” não respeitava ao ponto da situação nem à clarificação das divergências; constituía uma cedência em toda a linha às pretensões do governo, ratificando um modelo de avaliação transitório, simplificado e mais expedito, aplicável em todas as escolas, uniformizando as formas contraditórias com que estava sendo aplicado nalgumas, e aceitando a implementação plena, a partir do próximo ano, do modelo de avaliação imposto. O “entendimento”, no imediato, sanava as violações da lei pela sua aplicação não uniforme, eliminando um dos argumentos sindicais para a sua impugnação judicial, salvando o governo desse imbróglio, e no geral constituía uma traição aos interesses dos trabalhadores, descarada como há muito não se via.

Conhecidas as cautelas das direcções sindicais, também por força do compromisso que as constituíra em plataforma unitária, após a grande manifestação de 8 de Março suspeitava-se que viria marosca. Sentindo-se ultrapassadas, temia-se que baixassem os braços e, pela inércia, contribuíssem para mais uma derrota dos trabalhadores, como tem sido a táctica seguida tantas vezes. Não faltava quem prognosticasse o abrandamento da contestação dos professores, que raramente têm mostrado disposição para se envolverem em lutas prolongadas. Mas eles continuavam activos, manifestando-se contra o desprestígio social de que são alvo e recusando o modelo burocrático de avaliação que o patrão lhes quer impor. O clima emocional nas escolas fervilhava de indignação, e desta vez, tudo levava a crer, a inércia sindical não seria sustentável. Para o governo, a situação não era melhor, agravando-se a cada dia, a ponto de levá-lo a utilizar a não avaliação dos contratados como chantagem e meio de pressão.

A parada estava demasiado alta, e, sabe-se agora, teve de envolver como intermediários os mais altos dirigentes, pelo menos um ministro e o secretário da Intersindical, velhos e estimados conhecidos. É de presumir que tenha chegado, formal ou informalmente, ao secretariado do PCP e ao primeiro-ministro, porque nem a Intersindical nem os ministros têm autonomia suficiente para tais decisões. Imagina-se que o negócio, salvando o governo duma situação embaraçosa, tenha tido como contrapartida promessas de cedências na futura revisão do código do trabalho. De promessas está o inferno cheio, pelo que nos resta esperar para ver que nova vitória caberá aos trabalhadores. Provavelmente, uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma, como vem sendo habitual nos negócios entre o PCP e os governos.

As direcções sindicais foram meros peões de brega, prestando-se a vergonhosos papéis. Ainda poderiam ter ensaiado uma qualquer medida mais radical, que fizesse temer os professores e os desmobilizasse. Salvariam a face, mas o risco era demasiado, podendo sair-lhes o tiro pela culatra. Com a desfaçatez que as caracteriza, tiveram a falta de vergonha suficiente para cantarem vitória. E aqueles que nas escolas as secundaram, preparando com minúcia a encenação para a aceitação do negócio da traição, desempenharam uma função ignóbil. Estão habituados, é a sina das suas vidas: a quem eles devem fidelidade é ao partido, não aos trabalhadores. Mas o sindicalismo existe para defender os interesses dos trabalhadores, não para servir outros senhores, sejam os patrões, o governo ou os partidos; só pode servir a um amo, não a vários, conforme convenha aos dirigentes. Como vemos desde há várias décadas, defender os interesses dos trabalhadores não é o lema do sindicalismo vigente.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Dá-me o telemóvel, já! O ponto a que isto chegou.


Este é um espaço que utilizo para divulgar a minha crítica às teorias do marxismo e à profecia política do comunismo. De vez em quando, aproveito-o também para abordar outros assuntos, acerca dos quais tenha algo a dizer fora dos lugares comuns do costume. O texto anterior foi sobre os objectivos pretendidos com o novo modelo de avaliação do desempenho dos professores e sobre as falácias com que o patrão o fundamenta. Aproveito-o agora para falar um pouco sobre o vídeo amador mais famoso dos últimos tempos: um que por aí corre sob o lema “Dá-me o telemóvel, já!”. É fácil perceber que os dois temas se prendem com a minha actividade profissional.

Não vou discorrer sobre a escola e sobre a indisciplina que nela grassa. Esse é um assunto complexo, sobre o qual já aqui publiquei em tempos um texto mais extenso, que não o esgota; se tiver paciência, sobre ele elaborarei um texto autónomo. Também não vou dissecar as cenas do famoso vídeo, apesar do seu interesse como exemplo actualíssimo da miséria do que se vai passando por essas salas de aula; sobre isso tenho deixado breves comentários críticos em vários blogs. Aproveito-as apenas para comentar o ponto a que chegaram algumas palermices debitadas pelos palermas hedonistas e igualitaristas do costume, ou por outros em seu lugar, acerca da indisciplina e da violência verbal e física que ocorrem na escola, nos recreios e nas salas de aula.

Já vi escrito e ouvi de tudo acerca das cenas do famoso filme realista. Nalguns casos, que considero as apreciações mais imbecis, a professora sai crucificada, pela incompetência que teria revelado para lidar com a situação. Noutros, de que os exemplos mais recentes são as intervenções de Joana Amaral Dias no programa “Prós e Contras”, da RTP, da passada segunda-feira, e as posições públicas do Bloco de Esquerda, ressalta a indignação para com as pretensões do Procurador-Geral da República em investigar os casos de violência verbal e física que ocorrem nas escolas. De ambas retenho a complacência e a compreensão que os seus defensores manifestam para com a rebeldia dos adolescentes e para com a indisciplina e a violência verbal e física que dela pode resultar.

O que o famoso vídeo mostra não é um simples caso de indisciplina, de recusa do cumprimento das ordens dadas pela professora ou de transgressão das regras do relacionamento social, a que o querem reduzir os palermas do costume. Isso é o tema dos primeiros segundos de filmagem, nos quais a aluna se recusa a cumprir as ordens precisas que a professora lhe dá de forma educada. O que ali é mostrado é um claríssimo exemplo de coacção verbal e física sobre a professora, pessoa já na casa dos sessenta, por parte de uma adolescente exaltada e histérica, perante a hesitação de algumas outras em pôr cobro à situação e com a complacência e para gáudio da restante turba. Repito: coacção verbal e física sobre pessoa idosa e sobre o representante legítimo da autoridade. Se nem isto os palermas do costume consideram um ilícito criminal, não sei onde começará para eles um tal ilícito.

Os palermas do costume e os seus representantes fazem umas confusões danadas acerca da autoridade – não distinguindo entre quem é alvo dela, e a forma voluntária ou coerciva como a aceita, e quem está dela investido, e a forma persuasiva ou impositiva como a exerce, que pode influenciar a eficácia imediata do seu exercício – e permitem-se discorrer sobre a necessidade dos professores a conquistarem, negociando a sua aceitação, como se eles não estivessem investidos de autoridade pela função que desempenham e pela qualidade de representantes duma instituição coerciva. Os professores têm cada vez menos autoridade delegada, e muitas vezes demitem-se do seu exercício, é facto, mas isso são outras histórias. O que também é facto é que a redução da autoridade dos professores deriva das filosofias educativas centradas no aluno defendidas pelos palermas do costume, as quais têm sido creditadas com méritos totalmente infundados.

Como se não bastasse, os palermas do costume ainda têm a desfaçatez de reduzirem tudo o que se passa nas escolas a meras questões de indisciplina no cumprimento das regras de conduta necessárias para a aprendizagem. As escolas são espaços públicos, e muito do que nelas se vai passando – da circulação de álcool e de drogas à intimidação e à violência verbal e física exercida sobre os pares, sobre os auxiliares de educação e sobre os professores – excede a mera indisciplina e a insolência provocadas pela rebeldia típica da adolescência e não é diferente do que acontece fora dela. Com a agravante das escolas serem instituições onde se concentram grande número de adolescentes durante longos períodos de tempo e que os sujeita a actividades e a regras de conduta que contrariam a autonomia que presumem possuir e que pretendem exercer. Por tudo isto, o que lá se passa, quando configura condutas ilícitas, apesar de praticadas por adolescentes, não pode ficar fora da alçada da lei.

Na sua habitual confusão mental, os palermas do costume e os seus representantes confundem a eventual ilicitude dos actos com a eventual inimputabilidade de quem os comete. Para eles, a qualidade dos actos não deriva das suas características próprias, antes parece derivar da imputabilidade de quem os pratica. Dessa confusão deriva a indignação que manifestam acerca da investigação judicial do que se passa nas escolas. Da imputabilidade depende o tipo da sanção e a medida da pena, que deverá ser tipificada e graduada em função da capacidade de avaliação da conduta pelo agente, que só nos casos de incapacidade mental deveria chegar à impunidade. Outros palermas do costume, conservadores, tocados pela irresponsabilidade do agravamento penal, bradam pela necessidade de redução da idade da imputabilidade criminal para sancionar penalmente adolescentes imaturos. Entre a incapacidade de percepção da realidade de uns e de outros venha o diabo e escolha.

A adolescência é uma fase inevitável, mas passageira, da vida das pessoas, com características específicas propensas à transgressão das regras de conduta. A inconsciência, a leviandade e uma certa irresponsabilidade, derivadas da imaturidade, porém, não são confundíveis com a imbecilidade, e esta não é uma das características daquela fase da vida. Os adolescentes não podem, só por esta sua condição, ficar impunes quando praticam condutas ilícitas. Quando as praticam na escola, as sanções de que devem ser alvo não devem ficar limitadas a sanções do âmbito escolar. Entre a sanção penal e a sanção escolar existe a sanção reeducativa; e entre a prisão, o centro de reeducação e a escola existe a comunidade, e a prestação de trabalho comunitário, tão pouco divulgada entre nós, pode ser uma forma alternativa profícua de sancionar adolescentes.

“Dá-me o telemóvel, já!” é uma pequena fita de choque, que a inconsciência levou a tornar pública. Ilustra condutas ilícitas não confundíveis com indisciplina, que por esse facto não deveriam ficar impunes. Admira que a escola onde ocorreram apenas tenha aplicado aos seus autores leves sanções escolares, demitindo-se de providenciar a aplicação de outro tipo de sanções. Se em vez de vítima a professora fosse a autora, nesta altura não estaria a braços apenas com um processo disciplinar no âmbito profissional. É disso, aliás, que os jornais nos vão dando conta quando os professores aplicam aos alunos um qualquer castigo. Infelizmente, como nos mostram os palermas do costume, na sociedade hedonista e igualitarista em que vivemos o castigo não é a pena do crime, é o próprio crime!