sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O folhetim das escutas ao Pinóquio


As escutas ao bancário de sucesso Armando Vara, efectuadas no âmbito do processo Face Oculta em que é arguido, nas quais interveio o Primeiro-Ministro (PM), têm suscitado acesa polémica, que extravasou do campo da justiça para o da luta política. Não sendo o PM suspeito nem arguido naquele processo, intervindo nas escutas apenas como interlocutor fortuito do arguido legalmente escutado, a comunidade judicial dividiu-se quanto à validade do uso das referidas escutas como elemento probatório do conhecimento da existência de um crime de atentado contra o Estado de direito — constituído por um plano partidário e pessoal de controlo de órgãos de comunicação social através duma empresa participada pelo Estado, a Portugal Telecom (PT) — tendo em vista a abertura de inquérito judicial para a sua investigação. Foi entendimento do Ministério Público (MP) local e do juiz de instrução do processo que as referidas escutas eram válidas para aquele efeito, pelo que extraíram certidões para uso na abertura de inquérito em processo autónomo, e as remeteram ao Procurador-Geral da República (PGR). Apesar de se pronunciar no sentido do arquivamento daquelas certidões e da não abertura do inquérito, o PGR acabou por remetê-las, assim como as escutas que as acompanhavam, para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (PSTJ), como se as escutas em que o PM intervinha na qualidade de interlocutor fortuito do arguido legalmente escutado carecessem da sua autorização para serem realizadas.

Conhecida publicamente a suspeita da existência daquele crime, por fugas ao segredo de justiça, multiplicaram-se as interpretações acerca da validade das referidas escutas e das decisões do PGR. Para além de estúpidos desabafos de exaltados apaniguados políticos do PM, entre eles alguns ministros, na comunidade jurídica e da magistratura houve quem entendesse que as escutas eram válidas como elemento probatório da notícia da existência de crime, e, em conformidade, que o PGR deveria ter procedido à abertura do respectivo inquérito judicial, por muito infundada que fosse a existência do crime invocado, como expressamente refere o Código do Processo Penal (CPP); houve quem achasse que deveria ter remetido as certidões e as escutas para o MP junto das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, cujos plenos detêm a competência para julgar os detentores dos mais altos cargos do Estado, e não para o PSTJ, que apenas detém a competência para autorizar escutas em inquérito em que sejam suspeitos ou arguidos a escutar, o que não era manifestamente o caso; houve quem defendesse, infundadamente, a divulgação das escutas, mesmo sem a abertura de qualquer inquérito; e chegou a haver quem defendesse que o juiz de instrução, pura e simplesmente, deveria ter mandado destruir as escutas logo que delas tomou conhecimento. Pode-se dizer que houve opiniões para todos os gostos, e que muitas revelaram grande desconhecimento ou interpretações abusivas do CPP, como foi o caso da interpretação de um dos autores duma das últimas revisões do código. O caso permitiu evidenciar a falta de competência profissional de muitos juristas e de alguns magistrados, e suscitou as mais variadas suspeições.

Com base numa errada interpretação do CPP — confundindo escutas a um alvo arguido num processo, legalmente autorizadas pelo respectivo juiz de instrução, nas quais intervinha como interlocutor fortuito o PM, com escutas de que o PM fosse alvo, quer como suspeito, quer como arguido, as únicas sobre as quais detém a exclusividade da competência para autorizar ou mandar destruir, quer sem ser suspeito ou arguido, caso em que seriam inadmissíveis e ilegais e em que qualquer juiz de instrução determinaria a destruição, mandando proceder contra quem as tivesse ordenado — o PSTJ não só se considerou juiz competente, e nessa qualidade decretou a nulidade e a destruição das escutas, como ainda se dignou a ouvi-las para apreciar o seu valor probatório do conhecimento da existência de crime e a necessidade de abertura de inquérito judicial, em manifesta usurpação da função atribuída pela lei ao MP. O mais alto magistrado judicial envolveu-se assim numa inexplicável, mas significativa, trapalhada, que ficará constituindo uma nódoa a marcar negativamente a sua passagem pelo cargo, pela legítima suspeita de incompetência ou de favor político. Posteriormente, um seu roteiro por três estações televisivas, na mesma noite, em improvisadas entrevistas, como que a justificar-se não se compreendeu bem de quê, acrescentou uma pitada de grotesco ao seu desastrado desempenho.

O PGR, por seu lado, ao não decidir autonomamente sobre matéria que era da sua competência — determinar a abertura, ou não, de inquérito judicial — e ao remeter as certidões e as escutas para o PSTJ, não só não cumpriu o CPP como parece ter usado o PSTJ para atingir objectivo que de outro modo não alcançaria: a destruição daquelas escutas. Surpreendentemente, apesar dos despachos do PSTJ decretando a nulidade e a destruição das escutas, nem estas foram destruídas nem os despachos do PGR de arquivamento das certidões foram emitidos atempadamente, impedindo a sua consulta, que era requerida por vários jornalistas. Tratou-se notoriamente de expediente dilatório para impedir a consulta do processo administrativo em que as certidões e os despachos acerca delas se transformariam. Eventualmente, porque as certidões e os despachos do seu arquivamento conteriam transcrições de extractos das escutas que as acompanhavam, cuja nulidade havia sido decretada. Neste caso, foi clara incompetência, porque a nulidade das escutas tornara também nulas as suas partes transcritas, que teriam de ser igualmente destruídas, eliminadas das certidões e dos despachos de arquivamento, assim como do próprio processo onde foram obtidas.

Tendo o PGR já emitido despachos de arquivamento das certidões, de que partes do último circulam nos jornais, nem as escutas decretadas nulas, nem as transcrições dos seus extractos nas certidões, foram ainda eliminadas, dando cumprimento aos despachos do PSTJ, nem o processo administrativo em que as certidões se transformaram, ao não originarem qualquer inquérito judicial, pôde ser consultado. Em todo este folhetim, a conduta do PGR, para além de incompetente, foi deveras suspeita. Incompetente, porque tendo remetido as certidões e as escutas para o PSTJ, por dúvidas quanto à sua admissibilidade, o único despacho necessário diria respeito àquela sua decisão, na qualidade de superior hierárquico do magistrado do processo Face Oculta, terminando aí a sua intervenção; e, por outro, porque sendo o crime conhecido ainda na sua forma tentada, e acabando por não ser consumado, tendo o presumível mandante declarado publicamente que se opunha ao prosseguimento da execução do seu principal, se não único, objecto — a compra de parte substancial do capital da Media Capital, proprietária da TVI, pela PT, conferindo-lhe a capacidade de intervenção na definição da linha editorial daquela estação de televisão, com a qual o PM tinha um diferendo público — deixando a tentativa, por este facto, de ser punível, o PGR tinha toda a legitimidade para não indiciá-lo como suspeito, mas continuava sendo sua obrigação a abertura de inquérito para investigar outros intervenientes. Suspeita, porque ao não proceder assim e ao ter suscitado a intervenção do PSTJ o PGR demonstrou pretender obter decisão de nulidade e de destruição das escutas, impedindo que o seu teor fosse conhecido. Pode muito bem ter-se tratado apenas de incompetência, mas isso não afasta a legitimidade da suspeição de que a sua conduta representou um frete político.

No entretanto, o jornalismo sensacionalista, que não olha a meios para atingir fins, escudando-se num pretenso interesse público que arbitrariamente define, empolgado com uma suposta moralidade que não aplica a si próprio e que nunca caracterizou a política, foi publicando o que lhe aprouve das escutas, empenhado em criminalizar o que não passa de política pura e dura, ainda que moralmente reprovável, e apostado em transformar um político manhoso, como é o Pinóquio Tecnocrata, num reles criminoso de terceira apanha num mundo de imaginários impolutos servidores da coisa pública. Este tipo de jornalismo, levianamente, transforma indícios dispersos, por vezes insignificantes, ou ilusórios, e apenas ilustrativos da baixa política feita nos bastidores, em provas concludentes do cometimento de supostos crimes, pretendendo sobrepor-se à investigação judicial quando a deveria colmatar na sua ausência ou desencadeá-la, e, com total despudor, como se fosse o conhecedor antecipado da verdade, sem fundamento sólido lança suspeitas sobre os mais diversos protagonistas políticos e judiciais. Não se fica pela investigação e a notícia, transformando-a em informação; comenta, tira ilações insustentadas e conclui julgando comportamentos e caracteres. O caso do ex-futebolista Figo é elucidativo, como se um sujeito que vive da venda da sua imagem não a pudesse ceder para qualquer campanha publicitária e, como bónus, oferecer o seu apoio eleitoral a quem muito bem entender. Escudado na impunidade que critica, este jornalismo ainda recorre a expedientes legais para conhecer o teor do processo Face Oculta, constituindo-se assistente, e, violando a lei, divulgar o que se encontra sob segredo de justiça.

Nenhum político tem sido sujeito a tantas campanhas sistemáticas de ataques pessoais, visando envolvê-lo em ilegalidades, como o Pinóquio Tecnocrata. Ele tem variadíssimos defeitos de carácter: é egocêntrico, mentiroso compulsivo, exímio aproveitador das oportunidades, traficante de pequenos favores e de outras manigâncias e trata a ética com leviandade. E tem também variadíssimos defeitos políticos: é inculto, eclético nas políticas, governa pela propaganda e pelo culto da imagem e tem um conhecido pendor autoritário. Pouco nele é natural e espontâneo, quase tudo parece ser friamente calculado e soa a falso. Para manter a imagem rodeia-se de assessores e de conselheiros, que lhe traçam o guião, e para realizar planos serve-se de homens de mão, paus-mandados chorudamente pagos para que não tenham escrúpulos, prudentemente mantidos na sombra. Não tem só defeitos, é claro, tem também algumas virtudes: é firme e um mãos-largas para amigos, conhecidos e servidores, dos mais humildes aos poderosos. Que o diga o povo eleitoral que vive à conta do erário público pelas benesses fiscais, pelas privatizações, pelas parcerias ruinosas para o Estado, pelas concessões e empreitadas sem risco, pelas consultas e pareceres jurídicos, pelos serviços ajustados sem concurso, pelos empregos de favor e pelos subsídios de caridade os mais diversos. Mas este manholas, que do jornalismo só aprecia a louvaminha e o panegírico, tem-se mostrado obstinado, um osso duro de roer, tem ido a jogo, não tem voltado a cara à adversidade, e debitando impassível o mentiredo mais descarado tem dado aos inimigos um bailarico de destemor que tem dado gozo assistir.

Num qualquer outro sítio onde o cumprimento da lei e das decisões dos tribunais tivesse valor social, este folhetim, que se arrasta há meses, já teria levado à demissão do PGR, e alguns jornalistas armados em justiceiros já teriam conhecido a mão da justiça. Aqui, o Governo não o despede porque ele o serve, e SEXA o Presidente da República não o despacha porque não pode e porque isso aparentemente lhe interessa. Mas SEXA, ao menos, poderia dar um lamiré de descontentamento, mesmo que cínico. SEXA, porém, parece atender prioritariamente aos valores mais altos da aprovação do orçamento e apostar em deixar o Governo cozinhar no lume brando do lodaçal da judicialização da política, para não se queimar no centro-esquerda, até que chegue a altura de poder despachá-lo em grande velocidade ou, preferivelmente, até encontrar alguém que por si o destitua. Ao que tudo indica, este folhetim segue em próximos capítulos.