domingo, 25 de abril de 2010

Que todos os dias se cumpra o que de mais significativo o 25 de Abril de 1974 nos trouxe


Muito mudou o mundo. E nós, por cá, também. Há trinta e seis anos ganhámos a liberdade. Cuidemos com desvelo dessa pérola preciosa que esgueirando-se por entre os dedos da indiferença facilmente se poderá perder.

Que todos os dias se cumpra o que de mais significativo o 25 de Abril de 1974 nos trouxe, e assim perdure na memória.


quinta-feira, 1 de abril de 2010

A saga do folhetim das escutas ao Pinóquio


Neste já longo folhetim, e depois de transcritos pequenos extractos das escutas por um semanário, que pouco indiciam, o público nada sabe dos meandros do Código do Processo Penal (CPP) que lhe permitiriam formular opinião fundada acerca do assunto. Bastaria a transcrição da meia dúzia de artigos específicos do Código para que muitos leigos ficassem minimamente capacitados para acompanharem as doutas opiniões que entretanto foram formuladas e para aquilatarem da sua qualidade. Apesar da linguagem quase hermética usada num Código tão especializado, as disposições acerca desse meio de prova excepcional que é a intercepção de conversações e de comunicações telefónicas ou electrónicas, a sua gravação e o seu uso processual não são assim tão confusas que escapem à compreensão de qualquer pessoa e exijam interpretação especializada. Mal seria de um Código se as suas disposições não fossem suficientemente claras para serem compreendidas pelo comum dos mortais cujas condutas visam regular, de modo a salvaguardar e proteger direitos e garantias constitucionais necessários para a sua defesa, e exigissem uma tal interpretação.

O que vulgarmente se designa por “escutas” — a intercepção e a gravação de conversações ou de comunicações telefónicas ou electrónicas — só é permitido contra suspeitos e arguidos em inquérito judicial, por intercepção dos aparelhos que utilizam, e apenas para determinados crimes e depois de autorizado por juiz de instrução. Com elas fica-se a conhecer não só o que dizem os suspeitos ou os arguidos, mas também o que ouvem, o que lhes dizem os seus interlocutores. Estes não são alvo de escuta, porque os aparelhos que usam não são interceptados, mas as suas conversações ou comunicações são escutadas nos aparelhos usados pelos suspeitos ou pelos arguidos. O que dizem os interlocutores pode ser usado contra si, no mesmo ou noutro processo, desde que corresponda a crime em que as escutas sejam permitidas, e ainda como meio de prova de notícia ou de conhecimento da existência de crime, neste caso, independentemente da moldura penal. Foi o que ocorreu com as escutas a Armando Vara (AV), arguido no processo Face Oculta, nas quais interveio como interlocutor fortuito o Primeiro-Ministro (PM).

Ao que tudo indica, os aparelhos de comunicação usados pelo PM não foram objecto de intercepção, pelo que não foi alvo de qualquer escuta; a gravação das suas conversas deveu-se ao facto de ter sido interlocutor fortuito do arguido AV, alvo legalmente escutado. O que disse nessas conversas escutadas era tão válido quanto o que dissesse qualquer outro interlocutor fortuito do alvo, já que não existe distinção entre o PM e os restantes cidadãos quando não são alvo de escutas, isto é, quando os aparelhos de comunicação que usam, de que sejam ou não titulares, não são interceptados, como parece ter sido o caso. O que o CPP dispõe de excepção em relação às mais altas figuras do Estado, a este propósito, refere-se apenas ao juiz com a exclusividade da competência para autorizar e para mandar destruir escutas de que sejam alvo, anteriormente atribuída às secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), cujas decisões eram passíveis de recurso, transferida na última revisão do Código, por enxerto governamental à revelia da proposta da Comissão de Revisão, para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (PSTJ), de cuja decisão não existe possibilidade de recurso.

Não sendo as escutas em que o PM interveio relevantes para o processo no âmbito do qual foram obtidas, mas constituindo tão só prova da notícia da existência de um crime de atentado contra o Estado de direito, que assim chegou ao conhecimento do Ministério Público (MP), elas deviam ser retiradas daquele processo e usadas para a abertura de inquérito judicial de investigação daquele crime em processo autónomo. Foi o que aconteceu. Mas, ao invés de proceder à abertura do referido inquérito, o MP local remeteu as certidões e as escutas para o Procurador-Geral da República (PGR), eventualmente, porque o caso, envolvendo o PM, era melindroso, procurando, com este procedimento, o resguardo da hierarquia. Perante o conhecimento do que configurava um crime, era dever do MP local abrir o respectivo inquérito de investigação, remetendo o processo para o MP junto das secções criminais do STJ, dotadas da competência para praticarem os actos jurisdicionais subsequentes, o qual requereria a intervenção do PSTJ para autorizar escutas ao PM, eventualmente necessárias para a investigação caso ele fosse constituído suspeito, ou arguido. Ao não proceder assim, o MP local originou o inesperado folhetim conhecido, do qual muito pouca gente sai dignificada.

Passado tanto tempo, alguns persistem na argumentação de que as escutas em que intervinha o PM careciam de autorização do PSTJ, pelo que não tendo sido por este autorizadas seriam nulas. Uma tal argumentação, baseada na redacção ambígua da norma que designa o PSTJ como juiz competente para autorizar escutas às mais altas figuras do Estado, padece de inconsistência: não respeita o conceito de escuta nem contra quem pode ser usada nem os efeitos que pode produzir, constantes do CPP, a que a competência atribuída ao PSTJ está subordinada (“nos termos dos artigos 187.º a 190.º”, como expressamente refere a alínea b) do n.º2 do artigo 11.º). À luz do disposto naqueles artigos e no artigo 248.º, o PSTJ exorbitou as suas competências e a sua intervenção no caso foi abusiva, configurando uma violação do Código. Indiscutivelmente, aquelas escutas constituíam prova admissível do conhecimento da existência de um crime, com vista à sua investigação; o que poderia ser discutível, com pouco sucesso, diga-se, era se constituíam prova válida para a incriminação do PM, o que não foi invocado pelo MP, ou, até, se por si só constituíam prova suficiente para a indiciação da sua participação na execução do crime. Para isto, e para confirmar a existência de crime, serviria precisamente o inquérito judicial.

Na data em que foram extraídas as certidões do processo Face Oculta, a abertura de inquérito judicial ao crime de atentado contra o Estado de direito estava plenamente justificada. Logo depois, o presumível mandante afirmou publicamente que se opunha ao prosseguimento da execução do crime, e o negócio que constituía o seu objecto não se concretizou. Se a tentativa de execução era punível, a oposição do presumível mandante ao prosseguimento da execução fez com que em relação a ele deixasse de ser. Persistia, portanto, a punibilidade pela execução do crime, na forma tentada, quanto a outros presumíveis suspeitos, os paus-mandados, pelo que o correspondente inquérito judicial deveria ter sido aberto. Ao menos, para que os paus-mandados se apercebessem de que essa sua condição de reles serventuários na execução de crimes não elimina o risco de serem punidos. Bastava que o PGR quisesse contribuir para mudar a situação de impunidade reinante. Pelos vistos, não está interessado em desagradar a quem o propôs para o cargo.

No país dos brandos costumes, onde é grande a dependência do capital em relação ao Estado, há sempre outros serventuários do poder dispostos a prosseguirem com os objectivos procurados com a execução do crime. Não sei se é o caso, mas outra empresa, esta totalmente privada, apareceu pouco depois como promitente compradora da TVI; o director de informação da estação televisiva aceitou sair, a troco de choruda indemnização e do desempenho de outras funções na promitente compradora; e antes mesmo da consumação do negócio a contestada linha editorial da estação televisiva acabou por mudar, deixando de incomodar o Pinóquio Tecnocrata. O caso passou agora para o âmbito da política, para a alçada duma comissão parlamentar de inquérito, a pretexto de que o Pinóquio Tecnocrata mentiu à Assembleia quando afirmou desconhecer a existência do negócio objecto do crime. Em relação a ele, é em função da responsabilidade política que poderá e deverá ser julgado, porque da responsabilidade criminal parece que se livrou com a declaração de oposição ao negócio PT-TVI.

Os paus-mandados, exemplares da geração rasca que chegou ao poder ou à sua dependência, que mostraram, além de gritante mediocridade, uma total falta de escrúpulos — bem patente também nesse outro caso em que usaram os meios de comunicação para fornecerem informação falsa ao mercado e com isso obterem vantagens mercantis — esses, pelos vistos, safar-se-ão impunes. Se assim for, mal irá este país. A não ser que os indícios acumulados, que levaram à abertura de inquérito num outro processo — envolvendo a Taguspark, outra empresa participada através da PT e duma autarquia — apontem para que o instrumento da execução do crime não foi apenas a PT e permitam ainda a indiciação dos paus-mandados e dos seus mentores. Mas esta gentinha, pertencendo a uma rede organizada, não só usa linguagem codificada como se protege mutuamente, pelo que não será fácil apanhar tais sacripantas em contradições e fazê-los conhecer a mão da justiça.