quarta-feira, 16 de junho de 2010

A propósito de exames finais nacionais (1)


Começou hoje mais uma rodada de exames finais nacionais. Já lá vão catorze anos desde a sua reintrodução no ensino secundário no ano lectivo de 1995-96, pela mão da então Ministra da Educação Manuela Ferreira Leite, do PPD. Era tempo dos responsáveis pela administração educativa terem já feito balanço sério e rigoroso acerca dos propalados efeitos benéficos dos exames finais nacionais para a melhoria da qualidade da educação escolar. Até hoje, nada se conhece sobre o assunto, e não se vislumbra que algo venha a conhecer-se nos tempos mais próximos. Tanto mais que parece pretenderem estender a panaceia do exame ao ensino básico.

A percepção pública, que não deverá andar muito afastada da realidade, é a de que a qualidade da educação escolar tem vindo a baixar, apesar da reintrodução dos afamados exames. Incapazes de compreenderem a realidade, até o que ela vai permitindo percepcionar, políticos medíocres e irresponsáveis continuam demagogicamente apegados a uma panaceia que não resolve qualquer dos múltiplos e diversificados problemas que afectam a qualidade da educação escolar e, ainda por cima, que tem custos não despiciendos para o erário público.

A propósito de exames finais nacionais, recupero dois textos que publiquei no jornal PÚBLICO há catorze anos. Para não maçar, fica agora o primeiro; daqui por uns dias porei o outro, no qual fazia uma abordagem mais pormenorizada. O tempo que passou apenas contribuiu para fortalecer as posições que então defendia.


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EDUCAÇÃO: UMA PAIXÃO TÉNUE E CONSERVADORA?


O novo Ministro da Educação, Marçal Grilo, anunciou numa recente intervenção televisiva a extinção das provas específicas de acesso ao ensino superior, passando a função por elas desempenhada a ser suprida pelos “exames finais nacionais” do ensino secundário, instrumentos já velhos do arsenal da avaliação de selecção, reintroduzidos pela Ministra do PPD-PSD, Manuela Ferreira Leite, para vigorar a partir deste ano lectivo de 1995-96.

Do que pude depreender das suas palavras sobre o assunto, tal justificar-se-ia pela desnecessidade de submeter os alunos a dois exames, eventualmente sobre as mesmas matérias. Tratar-se-ia, assim, de uma racionalização dos mecanismos de acesso ao ensino superior que, segundo o ministro, teria até obtido a concordância de alguns parceiros institucionais.

Esta intervenção do ministro Marçal Grilo, usando a televisão do Estado para anunciar intenções da sua equipa eventualmente ainda não aprovadas em Conselho de Ministros, faz-me lembrar uma sua outra sobre a suspensão das propinas, e outras de colegas seus do governo sobre o reembolso do aumento da portagem da Ponte 25 de Abril ou sobre a atribuição das verbas do Fundo Social Europeu: precipitada, imponderada e, sobretudo, incoerente, em nada abonando a favor da imagem de competência que o Governo PS pretende transmitir, mas decerto populista para quem, de dois ou três, passa a fazer apenas um exame.

Precipitada, porque não tem suporte num acto legislativo concreto e definido, nem sequer numa mera decisão do Conselho de Ministros, correndo o risco, no interim, de evoluir e transformar-se numa decisão de qualquer outro tipo.

Imponderada, porque na eventual fogosidade da paixão se confundiu o objecto a extinguir, isto é, confundiram-se as provas específicas, estabelecidas pela Lei de Bases do Sistema Educativo (aprovada pela Assembleia da República), com o exame final nacional imposto por um despacho da então Ministra Ferreira Leite.

Incoerente, porque partindo de um membro de um governo que se afirma paladino do progresso e se pretende renovador da esperança na resolução das injustiças sociais acaba não só por legitimar um instrumento de avaliação conservador e arcaico — o exame final nacional — como passa a atribuir-lhe uma dupla função: validar a conclusão do ensino secundário e, concomitantemente, o ingresso no ensino superior.

O lançamento da reforma curricular foi acompanhado de um novo modelo de avaliação que no conjunto — apesar de algumas imprecisões conceptuais e da timidez das inovações — constituiu um progresso notável em relação ao anterior. O acolhimento da avaliação formativa, do carácter sistemático e contínuo da avaliação, da diferenciação do ensino e da progressão como regra fazem do novo modelo de avaliação um instrumento ao serviço da melhoria da qualidade da aprendizagem e do sucesso escolar dos alunos.

Pela ruptura com a regra da retenção penalizadora e da repetência recuperadora, esta nova orientação encontrou alguma incompreensão por parte da opinião pública e foi alvo da crítica de alguns políticos da nossa praça e de alguns professores mais conservadores, apostados na manutenção do carácter tradicional da avaliação exclusivamente ao serviço da selecção dos alunos.

Dois anos depois, em 1994, uma nova equipa ministerial da educação de um mesmo governo acolheu algumas das críticas, clarificou a regra da retenção e da repetência e reintroduziu a avaliação final pelo exame (que designou por prova escrita global) como elemento de moderação da avaliação da frequência.

O novo modelo de avaliação no ensino básico, assim corrigido, foi em parte transposto para o ensino secundário, reforçando, neste caso, a avaliação de selecção com a reintrodução do exame anual local (a nível de escola, designado por prova escrita global) nos três anos do ensino secundário e do exame final nacional, na maioria das disciplinas, no 12.º ano.

A reintrodução do exame como instrumento de avaliação insere-se em velhas concepções elitistas do processo educativo — nomeadamente, que o sucesso se obtém para fuga ao estigma e à penalização e não pelo empenhamento na superação de desafios; que a auto-aprendizagem pelo estudo concentrado (vulgo “marranço”) imposta pela pressão do exame é mais valiosa que a aprendizagem acompanhada, interaccional e desejada; que a melhoria da qualidade de qualquer produção se faz pelo controlo e não pelo desenvolvimento regulado; que o sucesso educativo deve obedecer a um padrão único, homogéneo e simultâneo reservado àqueles que melhor se adaptam às regras e aos objectivos uniformes impostos pela ditadura normalizadora da elite — quando a vida foi demonstrando a necessidade da educação e do sucesso educativo para todos no respeito pela diferença.

Desde os anos 20, o movimento docimológico criticou a consistência, a validade e a fiabilidade do exame como instrumento de avaliação da aprendizagem em programas longos — quer pelo seu carácter de prova terminal e unificada, quer pelas condicionantes dos moldes da sua elaboração, correcção, classificação e prestação — e propôs a sua substituição pela avaliação contínua — multi-instrumental, sistemática, cumulativa e globalizante — conceito que passou a integrar os modelos de avaliação nas reformas educativas dos anos 60 e 70. Embora contínua, a avaliação permanecia desintegrada do processo de ensino e de aprendizagem, pelo que a partir dos anos 70 a investigação educacional vem propondo o conceito de avaliação formativa, isto é, a avaliação integrada no processo de ensino e de aprendizagem como seu instrumento regulador, tendo em vista a melhoria da qualidade das aprendizagens e o sucesso escolar.

Ainda que timidamente, a reforma educativa em curso acompanhou, até ao consulado da Ministra Ferreira Leite, esta evolução da concepção da avaliação. Com ele, porém, a avaliação regressou aos seus contornos conservadores, e, no ensino secundário, o modelo em vigor constitui mesmo um retrocesso sem precedentes, atenuado apenas pelo facto de nele o exame (local ou nacional) não constituir o instrumento único da avaliação, como era tradição, mas um instrumento de moderação (de factor 1/4 no exame local e de 2/5 no exame nacional) da avaliação que os professores vão produzindo ao longo do ano.

Se a validade do exame como instrumento de avaliação da aprendizagem em programas longos integrados em sistemas de ensino universais de acesso automático ou aberto é muito contestada, já a sua validade como instrumento de selecção para o ingresso em sistemas de ensino de acesso restrito (quer condicionado por exigência de competências específicas, quer limitado por um número determinado de vagas) é frequentemente aceite.

Apesar da injustiça individual que eventualmente acarreta — porque para além da arbitrariedade da sua elaboração, correcção e classificação e da sua discutível fiabilidade, a ansiedade com que o exame é prestado, e que condiciona os seus resultados, é diferente de sujeito para sujeito — o resultado do exame, ponderado com o percurso escolar dos sujeitos, tem-se revelado um predictor do sucesso cuja correlação é maior do que a da escolha ao acaso. A selecção pelo exame tem, portanto, maior validade para predizer o sucesso futuro do que a escolha ao acaso, na admissão restrita; mas esse facto não o justifica no terminus de um curso longo, de acesso aberto como é, por exemplo, o ensino secundário. A não ser que o objectivo fosse limitar, através de um controlo externo, o número daqueles que o concluem, o que seria um paradoxo.

São paradoxos deste tipo que a Ministra Ferreira Leite veio introduzir nos modelos de avaliação no ensino básico e no ensino secundário, subsistemas de ensino universais de acesso automático ou aberto, com as provas globais ou exames locais e com os exames nacionais. Nesta lógica, os exames poderiam até desempenhar melhor o seu papel de instrumentos de selecção, com menos custos e tornando os subsistemas mais eficientes, se fossem usados para condicionar o acesso ao 3.º ciclo do ensino básico e ao ensino secundário. Só que, neste caso, o seu papel de condicionadores do acesso ficaria claro e em contradição frontal com a universalidade e o acesso automático ou aberto que a lei impõe para estes subsistemas. Por isso, a sua utilização como exames finais (sejam locais ou nacionais), e a menor eficiência daqueles subsistemas, é o preço a pagar para a ocultação dos verdadeiros objectivos que a administração pretende atingir com eles.

Esperar-se-ia, portanto, que a equipa da educação do novo governo interviesse na reformulação dos modelos de avaliação nos ensinos básico e secundário, no sentido de os dotar de maior rigor conceptual, de alargar os mecanismos de diferenciação do ensino, de incentivar a aplicação da avaliação formativa, de implicar mais as famílias na decisão educativa sobre o percurso e os resultados dos alunos, de possibilitar a inovação metodológica, organizacional e funcional do ensino e da aprendizagem para que a escola cumpra o papel que lhe cabe de potenciadora do desenvolvimento pessoal dos sujeitos enquanto seres plenos e cidadãos conscientes, e, neste sentido, impunha-se a abolição dos exames locais e nacionais. Ao invés disto, o Ministro Marçal Grilo legitimou-os e reforçou-lhes a função.

Esperar-se-ia, também, que a mesma equipa interviesse no modelo do concurso de acesso ao ensino superior, limitando as provas de acesso às provas específicas, as únicas que a Lei de Bases prevê, fixando, em nome da qualidade, uma classificação mínima de ingresso e acabando com a vergonha do ingresso com classificação negativa, entregando o processo às universidades e às escolas superiores no respeito pela sua autonomia, reservando para a administração o papel de garante da observância das regras de um concurso plenamente nacional e transparente. Ao invés disto, o Ministro Marçal Grilo aboliu as provas específicas e afastou as escolas superiores do processo de selecção dos seus futuros alunos.

Esperar-se-ia tudo isto e muito mais, no que respeita a tantas outras questões relativas ao sistema educativo — a autonomia das escolas e a desconcentração dos poderes de gestão operacional e política, o ensino recorrente e a educação de adultos, a formação profissional, o ensino técnico-profissional, o ensino especial, a educação pré-escolar, etc., etc. — mesmo que sem pressas e sem precipitações.

O que há por fazer é tanto que é ainda cedo para perder a esperança. Mas as medidas anunciadas nestes três primeiros meses — suspensão atrás de suspensão, sem alternativas coerentes — parecem não prenunciar boa coisa da equipa ministerial da educação e deixam apreensivo quem se interessa por estes assuntos. É caso para dizer, afinal, que além de ténues ou fogosas as paixões também podem ser progressivas ou conservadoras. Esperemos que o Primeiro-Ministro não permita que a sua paixão pela educação se quede por uma paixão ténue ou conservadora.


Almada, 10 de Fevereiro de 1996.

José Manuel Correia


(Texto original, que difere ligeiramente da versão publicada no jornal PÚBLICO, de 21 de Fevereiro de 1996, com adaptações editoriais então aceites).

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