domingo, 25 de maio de 2014

O comunismo autogestionário de João Bernardo. Duas ou três coisas a propósito.

Pertenço ao grupo, eventualmente pequeno, dos que lêem o João Bernardo vai para quarenta anos. Venho lendo-o sem a frequência com que ele tem publicado, dado que é escritor prolixo, e muito espaçadamente, por vezes, passados anos, quer porque sem notícia de que fora editado, quer porque o assunto não me despertara a curiosidade suficiente ou a obra, pela extensão (e pelo preço, que o papel está caro), me dissuadira da empreitada.

Não posso dizer que a sua já longa faceta de militante comunista (na variante conselhista ou autogestionária) me desperte simpatia, nem que a de ideólogo me suscite concordância, ao contrário do que acontece com a de historiador do fascismo. Penso mesmo que esta seria onde deveria ter aplicado as suas grandes capacidades de observação e de escrita, pois através dela legaria algo de muito útil à sociedade.

Não me pronuncio acerca da sua militância política, que aliás é coerente com a ideologia que professa e que procura alicerçar teoricamente. Descortino, porém, uma contradição de base entre a sua postura de historiador, procurando usar instrumentos da ciência para chegar a conclusões plausíveis, e a de ideólogo, menosprezando a ciência e substituindo-a pelo desejo e pela imaginação, descurando a realidade e apegando-se à utopia (ou, até, à profecia).

Ainda que os ideólogos não aspirem a ser cientistas, salvo raras excepções de perniciosos efeitos, como foi o caso do Marx, ao contrário do que acontece com alguns historiadores, entre eles o João Bernardo, isso não invalida a postura discrepante do João Bernardo ideólogo com a do João Bernardo historiador. A mim, que lhe ouvi dizer, vai para vinte anos, que a crença no comunismo é uma questão de fé, essa discrepância não me surpreende, mas suspeito de que possa ser nefasta para a sua credibilidade como historiador.

Posto isto, ouso criticar umas quantas ideias que o João Bernardo vem expressando de longa data, algumas repetidas neste último manifesto que levantou polémica. Deixo para o fim a ideia profética do comunismo proletário como necessário sucessor do capitalismo, que nada na história ou na realidade empírica permite fundamentar ou, sequer, conjecturar a possibilidade; começo pelo conceito de mais-valia (absoluta e relativa), que foi buscar ao Marx e que usa sem qualquer espírito crítico (ao contrário do que sucedeu com outras ideias do Marx, que criticou e rejeitou).

É surpreendente que uma pessoa da sua envergadura intelectual use o conceito de mais-valia, resultante duma dificuldade inultrapassada do Marx para fundamentar a apropriação de valor pelo capitalista na relação de troca com o trabalhador assalariado, que não passou duma sua afirmação (“o valor do novo produto abrange ainda o equivalente ao valor da força de trabalho e uma mais-valia”, porque a força de trabalho “possui menos valor do que aquele que é criado com seu emprego”, disse o Marx sem o demonstrar, e assim foi tomado por facto), sem se aperceber de que está repetindo uma impossibilidade física, já que nada, nem mesmo a virtuosa força de trabalho, pode fornecer mais do que contém, seja do que for que contenha (valor ou outra coisa qualquer).

Este simples facto revela que o João Bernardo, tal como o Marx, não conseguiu ir além da teoria do valor das mercadorias do Ricardo, aceitando o conceito pelo nome, sem o definir, apenas identificando o padrão que o mediria: o tempo de trabalho. Ora, o tempo de trabalho é um valor, de facto, mas representa em termos práticos e expeditos o valor ou quantidade de energia humana consumida, antes de mais, para produzir o próprio trabalho humano com utilidades concretas muito diversificadas e, depois, através da acção sobre os objectos de trabalho em que ele é consumido, para produzir as restantes mercadorias.

O famoso valor das mercadorias ricardiano, portanto, não é mais do que a quantidade de energia humana que custa produzi-las. Custo de produção é, pois, a grandeza que está em causa, e ela é medida pelo valor ou quantidade da energia consumida. Daqui decorre que o Marx errou ao identificar como grandezas relevantes das mercadorias apenas a utilidade (cuja medida é o valor de uso) e a relação de troca (cuja medida é o valor de troca). As mercadorias não têm apenas valor de uso e valor de troca, mas também valor do custo de produção, como quem as produz, o trabalhador, e quem organiza a sua produção, as compra e as vende, o capitalista, bem sabem.

A partir desta constatação simples decorre que o trabalho, tendo valor de custo de produção e outras características das mercadorias, ao contrário do que o Marx afirmou, é a mercadoria que o trabalhador assalariado vende ao capitalista, também ao invés do que ele afirmou. A força de trabalho, cuja utilidade é precisamente a de produzir trabalho, não é coisa que o trabalhador possa vender, porque não se pode desprender do seu ser e é por si consumida, mas é o que faz dele um produtor de mercadorias, o produtor de trabalhos com utilidade diversa. Não seria lícito a alguém vender um produto (a força de trabalho) e entregar outro (o trabalho), mas ser-lhe-ia impossível fornecer o que consome (a força de trabalho). O que o trabalhador vende e fornece ao capitalista, portanto, é o trabalho e não a força de trabalho.

Da errada identificação da mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado decorre a errada concepção marxista da génese da parte do valor do custo de produção apropriada pelo capitalista, de cuja venda resulta o lucro, atribuída à capacidade sobrenatural da mercadoria especial de corrida força de trabalho para fornecer mais valor do que um seu suposto valor e não à troca desigual a que o trabalhador assalariado está sujeito na sociedade capitalista ao trocar trabalho presente por menor quantidade de trabalho passado. É por isso lastimável ver o João Bernardo, quase cento e cinquenta anos depois, a repetir erros crassos, autênticas baboseiras, do Marx.

O João Bernardo erra também noutras questões sobre as quais o Marx foi apenas limitado, uma delas o dinheiro, no que ele tem representado ao longo da história e no que representaria numa hipotética sociedade comunista. Na origem, o dinheiro, moeda metálica, foi apenas um meio de pagamento do trabalho da soldadesca, adquirindo por esta via uma expansão territorial que outras moedas de troca (mercadorias correntes usadas na troca por outras), geralmente locais, não possuíam. Moeda de aceitação imposta, fraccionada e duradoura, versátil e cómoda, com o desenvolvimento da sociedade mercantil, a sociedade das trocas, o dinheiro adquiriu o estatuto de mercadoria equivalente geral, pela qual todas as outras podiam ser trocadas. É temerário, contudo, afirmar a existência do dinheiro no passado (mesmo sem retroceder a épocas em que ainda não se trabalhavam os metais) em sociedades sem exploração, que certamente não necessitariam de exércitos regulares pagos, ou pagos para além do pagamento em espécie que lhes acabedaria dos despojos do saque dos bens dos vencidos.

Mas a afirmação de que “o dinheiro serviu e serve acima de tudo como transmissor de informação” (eventualmente, como tantas outras coisas) é de bradar aos céus. O dinheiro é mercadoria e, como outras, tem valor de custo de produção, valor de uso e valor de troca. Modernamente, com a substituição de parte substancial da sua forma moeda metálica pela de bilhete ou nota de banco, o seu valor do custo de produção fica muito aquém do seu valor de troca nominal, fixado arbitrariamente pelo Estado, e a sua utilidade restringe-se à de meio de pagamento, função principal (mas não a exclusiva) desempenhada pelas moedas. Com reduzido valor de custo face ao valor de troca nominal e com utilidade restrita, sem a garantia de cobertura do seu valor de troca pelo de outras mercadorias de aceitação geral de maior valor de custo e de utilidade diversificada (como o ouro, por exemplo), o dinheiro foi transformado em moeda fiduciária, cujo curso resulta da imposição da sua aceitação e da confiança na manutenção daquele seu valor de troca nominal. Como se vê todos os dias pela inflação dos preços, a confiança é um logro. E se há informação que o dinheiro transmita, desde logo pela sua existência, é a do poder detido pela plutocracia, a fracção da oligarquia que reservou para si a sua produção e comercialização transformando-o em capital, em dinheiro com capacidade para gerar mais dinheiro, sortilégio apenas possível em sociedades onde exista qualquer forma de exploração.

Seria deveras difícil que numa hipotética sociedade comunista, mesmo que apenas dividida pela distância em comunidades produtoras locais e, por isso, não auto suficientes na generalidade das mercadorias, a troca desaparecesse, e com ela o mercado ou lugar onde ocorre, e assim também a necessidade de uma qualquer moeda. Já seria menos provável que houvesse necessidade de uma tal moeda assumir a forma dinheiro (porque embora o dinheiro seja moeda nem todas as moedas são dinheiro) quando os meios contabilísticos informatizados já hoje possuem as capacidades de computação conhecidas e, estando abolida a propriedade de meios de produção dos não produtores, tivesse desaparecido a mercadoria trabalho vivo, o respectivo mercado e a troca desigual que caracteriza a exploração, eliminando assim a possibilidade de transformação do dinheiro em capital. Para que seria então necessário o dinheiro, sob qualquer forma, numa sociedade de troca equitativa, baseada na troca de equivalentes do valor do custo de produção, e não na troca desigual de que o valor de troca é expressão, na qual o trabalho morto seria a mercadoria universal e, com isso, tornasse dispensável uma mercadoria equivalente geral?

O João Bernardo erra ainda repetindo outros erros do Marx, como em relação ao crédito, parecendo não compreender que o dinheiro de crédito, dinheiro vendido com pagamento a prazo, hipocritamente dito emprestado, essencial para o desenvolvimento do capitalismo (para a reprodução ampliada do capital e para a acumulação de capital produtivo), não corresponde apenas a dinheiro ocioso mobilizado dos mais diversos locais, o que já não seria pouco, mas em grande parte a dinheiro fictício, sem existência material na forma de moeda metálica ou na de bilhetes ou notas de banco (mesmo sem cobertura do seu valor de troca facial pelo valor de troca equivalente duma mercadoria de aceitação universal como é o ouro, por exemplo, com valor de custo mais elevado) e de existência meramente escriturada nos balanços bancários (também sem cobertura pelo valor de troca de outras mercadorias de menor liquidez que os bancos detenham como seus activos).

Sem compreender a qualidade de dinheiro fictício de grande parte do dinheiro de crédito ele não compreende uma das principais causas do desenvolvimento tão acelerado do capitalismo industrial, muito superior ao que ocorreria se a realização da reprodução ampliada e da acumulação do capital se devesse apenas à mobilização de dinheiro ocioso e à troca desigual com modos de produção anteriores e entre formações sociais capitalistas com desiguais níveis de produtividade. Assim como não compreende o surgimento das crises de sobreprodução com origem nas crises financeiras, devido precisamente ao crescimento desmesurado e sem controlo da parte de dinheiro fictício do dinheiro de crédito, de existência meramente escriturada, nem tão pouco aceita as denúncias (enviesadas, é certo) que certa esquerda faz do capital financeiro, que de facto se tornou o dono do Estado burguês.

Ele julga, erradamente, que a dinâmica do capitalismo provém da chamada mais-valia relativa, como se a redução do custo de produção unitário proveniente do aumento da produtividade não implicasse aumento do volume das mercadorias produzidas, o qual, para ser transformado em aumento do valor apropriado sob a forma de lucro do capital, apesar da eventual baixa do preço unitário, não exigisse maior quantidade de dinheiro e, logo, maior quantidade de dinheiro de crédito e da sua componente de dinheiro fictício. Daí que não compreenda que o ritmo de desenvolvimento económico numa hipotética sociedade comunista onde não existisse a trapaça generalizada da troca desigual e a vigarice institucionalizada da venda de mercadoria alheia (o dinheiro posto à guarda dos bancos) ou inexistente (o dinheiro fictício criado pelos bancos) seria necessariamente diferente do ritmo de desenvolvimento da sociedade capitalista.

Isto nada tem a ver com a redução dos ritmos de crescimento devida à escassez ou ao esgotamento de recursos naturais invocada pelos críticos ecologistas do capitalismo. Em todas as épocas as sociedades humanas tiveram os recursos de que necessitaram (porque o que não existe, tenha existido ou não, não é necessário), e em todas as épocas houve recursos esgotados que foram substituídos por outros. O menor ritmo de desenvolvimento económico adviria da diferente organização da produção social, e teria como compensações, antes de mais, muito menor desperdício e muito menor sofrimento humano do que os que resultam dos baixos salários, do desemprego persistente e das crises de sobreprodução recorrentes no capitalismo (que nessa hipotética sociedade não existiriam de todo ou existindo, porque uma completa correspondência entre a produção e as necessidades humanas não seria talvez possível, teriam muito menor amplitude), e, depois, outras derivadas da diferente organização política e cultural da sociedade.

Imaginar o que seria o futuro dum presente que não existe, uma hipotética sociedade comunista começada a construir após a tomada do poder político e a partir dos meios de produção do capitalismo, é claro, constitui um exercício surrealista, que se presta a toda a sorte de fantasias. E isto decorre de outro dos erros clamorosos do João Bernardo, na esteira do Marx: a crença, pela fé, de que o comunismo proletário será o necessário sucessor do capitalismo. Nada permite sequer conjecturar essa possibilidade: na história, não se tem conhecimento de que uma classe social explorada tenha sucedido na direcção da sociedade à classe que a explora; na realidade empírica, não existe qualquer modo de produção comunista (por exemplo, sob a forma de empresas cooperativas de produtores associados, nas quais tenha sido abolida a relação de produção salarial) convivendo em simbiose com o modo de produção capitalista, ou que esteja operando uma revolução económica em concorrência com ele, e cuja classe social dirigente (no caso, única) esteja lutando contra os entraves que a dominação política da burguesia coloque à sua expansão e aperfeiçoamento, com isto procurando levar a cabo a conquista do poder de Estado através da revolução política.

Mesmo que na sociedade existisse já hoje um tal novo modo de produção, ainda que sob a forma embrionária invisível aos olhos que apenas vêem a floresta e não descortinam as árvores nem os frágeis rebentos que nela despontam — constituído por pequenas empresas cooperativas formadas por iniciativa de trabalhadores até aí assalariados (desempregados ou fortemente motivados), nomeadamente, em actividades inovadoras não requerendo meios de produção vultuosos e em que o trabalho criativo fosse o principal factor produtivo, e, depois, expandindo-se para grandes empresas capitalistas de que os trabalhadores tomassem a posse e a propriedade e autogerissem — esse novo modo de produção comunista teria de ir demonstrando a sua superioridade económica em concorrência com o modo de produção capitalista em decadência, auferindo os proventos das trocas desiguais com ele, e só assim ganharia pés para andar. Céptico, não creio que um tal modo de produção, com esta ou outra origem e tomando esta ou outra forma de produção cooperativa, a existir, tivesse qualquer possibilidade de sucesso, mesmo a muito longo prazo, que é o tempo em que decorrem as revoluções económicas. Certo e seguro é faltarem-me os dotes adivinhatórios para predizer o incerto futuro, e não ouso imaginá-lo, coisa que não incomoda a outros, que vivem sonhando com a concretização de velhas profecias.

De qualquer modo, quer existisse e este cego não o visse, quer viesse a existir quando ele cá não estivesse para vê-lo, que classe social seria a protagonista desse hipotético novo modo de produção? Nessas ilhas onde tivesse sido abolido o salariato, a relação de produção de exploração que caracteriza o modo de produção capitalista, e o trabalho subordinado que lhe é inerente, substituídos por formas de distribuição equitativa (e igualitária e mesmo compensatória) do produto e pelo trabalho cooperativo, os trabalhadores não seriam já trabalhadores assalariados, mas trabalhadores livres associados, produzindo em cooperação em empresas autogeridas. A revolução política que levariam a cabo para adequar a superstrutura institucional, jurídica e ideológica da sociedade aos seus interesses, portanto, não seria a revolução proletária ou dos trabalhadores assalariados, mas a revolução dos produtores associados. Até por isto, julgo que a revolução comunista proletária proclamada pelos anarquistas, pelos conselhistas, pelos marxistas-leninistas, pelos trotskistas e por outras correntes aparentadas não tem pés nem cabeça, é um daqueles mitos que povoam as utopias e as profecias.

Chega a ser confrangedor que uma pessoa tão inteligente, culta e informada, como é certamente o João Bernardo, permaneça durante tantos anos preso a uma mitologia tão arcaica e persista repetindo erros tão clamorosos do Marx e produzindo outros ainda mais disparatados (que me abstenho de comentar). Mas a predisposição para a crendice em infantilidades parece ser a sina até dos mais ilustrados teólogos e pregadores, que não se conformando com a injustiça terrena encontram no mundo mágico dos desejos o consolo para as angústias com que a realidade iníqua teima em atormentá-los, alimentando o sonho permanente em que existem com a fonte inesgotável da esperança.


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