domingo, 1 de fevereiro de 2015

Saída para a crise: destruição de capital fictício pelo perdão das dívidas

As crises económicas recorrentes no modo de produção capitalista podem ter múltiplas origens, mas apresentam-se geralmente sob a forma de crises de sobreprodução ou de produção excessiva em relação à procura solvente, com a consequente baixa da taxa de lucro. Os seus resultados mais imediatos são o desperdício da parte das mercadorias produzidas em excesso e a inactividade ou a destruição parcial das forças produtivas disponíveis, com falências empresariais e desemprego dos trabalhadores e a degradação das suas condições de vida, de modo a adaptar a produção à procura solvente.

A destruição de capital — mormente de capital mercadoria e de capital produtivo — que resulta de imediato das crises tem acabado por constituir um dos meios necessários para a reconstituição das condições adequadas para a reprodução ampliada do capital à taxa de lucro tida como aceitável. Nem sempre, porém, a destruição de capital restrita a estas suas formas é suficiente, nomeadamente, quando as crises são provocadas por sobreprodução alimentada por excesso de capital fictício. Neste caso, a saída das crises só será possível com a destruição do capital fictício em excesso, através de perdas suportadas pelos bancos seus criadores.

O que se tem verificado na actual crise do modo de produção capitalista, após as primeiras falências bancárias, depois de 2008, é que ao invés de deixarem repercutir as perdas nos grandes bancos responsáveis pela criação do dinheiro fictício que originou o capital fictício, os governos têm optado pela sua salvação, injectando-lhes mais dinheiro. Argumentam em defesa de tais decisões que os grandes bancos são demasiado grandes para falirem, o que introduziria ainda maiores perturbações na economia. Deste modo, os perturbadores têm saído impunes e até premiados, o que não deixa de ter o seu quê de surrealista, e a situação de crise tem-se arrastado.

As aplicações mais correntes do capital fictício são na especulação bolsista e na compra de títulos de dívida dos Estados e de empréstimos obrigacionistas às empresas, seja directamente pelos bancos, quer pelos bancos ditos de investimento, quer pelos de retalho, seja por particulares e por empresas financiados pelos bancos. Os grandes volumes de capital envolvidos na especulação financeira não só têm obrigado ao endividamento excessivo do sistema bancário, mesmo que a taxas de juro muito baixas, através de empréstimos concedidos pelos bancos centrais emissores, como têm constituído um apelo irresistível à criação de dinheiro fictício, visto a grande liquidez dos títulos objecto da especulação facilmente induzir a ilusão de o risco ser mínimo e de o lucro estar garantido como renda.

A redução dos elevados défices orçamentais que alimentaram durante anos o crescimento das dívidas públicas, contraídas maioritariamente no exterior e que se tornaram dificilmente suportáveis nalguns países da União Europeia, e o pagamento dos encargos com essas dívidas têm provocado profundos cortes nas despesas públicas correntes e de investimento, brutais aumentos de impostos e reduções de salários e de pensões, que se têm repercutido na diminuição do consumo interno, assim como têm levado à venda ao desbarato de empresas e de património públicos. Como a grande parte dos encargos com as dívidas sai das economias locais e a diminuição do consumo interno não tem sido compensada pelo aumento líquido das exportações face às importações, persistem as situações de estagnação económica ou mesmo de recessão.

Estas decisões económicas, apelidadas pelas esquerdas políticas de austeritárias, não têm constituído solução para a eliminação dos défices ou, ao menos, para a sua redução substancial e sustentada, nem para a contenção das dívidas públicas, que não têm parado de crescer, nem para a saída das situações de crise económica. Mas a receita por elas requerida de compra de títulos de dívida pelo Banco Central Europeu, nomeadamente, através do mercado secundário, pela recompra de títulos detidos pelos bancos comerciais, correspondendo à injecção de mais dinheiro na economia, também não constitui solução. O aumento da liquidez dos bancos chegaria mais depressa aos mercados financeiros, realimentando a especulação, do que ao consumo produtivo ou ao pessoal, sem contribuir para o aumento do investimento nem para a recuperação económica nem para a redução das dívidas.

Na economia não falta capital; o que existe é capital em excesso, mormente na sua forma de capital fictício. Sem destruição desta forma de capital não se vislumbra como poderão as diversas economias sair da situação de crise. Destruir capital fictício, antes de mais, implica o não pagamento das dívidas públicas contraídas por recurso a esta forma de capital. Ao menos, reduzir o seu volume implica a renegociação dos montantes, das taxas de juro e das maturidades. O alívio dos encargos tornaria possível alguma retoma do consumo interno, pelo investimento público em infra-estruturas e pelo consumo pessoal, neste caso, com a restituição da parte roubada dos salários e das pensões. A renegociação das dívidas, de modo a tornar o seu pagamento exequível, aliás, é uma constante da actividade económica. Os credores não são tontos ao ponto de preferirem correr o risco de perderem tudo quando podem apenas deixar de ganhar.

O não pagamento de dívidas, por seu lado, não acarreta violação de qualquer preceito moral. A moral não é coisa que faça parte dos códigos de conduta dos capitalistas nem dos contratos comerciais. Uma das mais fortes fontes de legitimação do lucro na forma de juro do prestamista é precisamente a sua condição de prémio pelo risco do incumprimento do pagamento da dívida a que respeita. São de todo inaceitáveis, por isso, as referências que alguns políticos palermas, como o alegado primeiro-ministro, fazem à obrigação de se honrarem os compromissos para com os prestamistas, defendendo os interesses desses credores em vez de defenderem os interesses dos povos que os elegeram. São tantos os especuladores que não faltarão para se substituírem uns aos outros.

A actual situação das dívidas públicas não é brilhante, e é forte a oposição à aceitação das suas reestruturações, tal como não é fácil a tomada de decisão do seu não pagamento. Com a substituição de grande parte dos credores privados por credores institucionais, entretanto ocorrida pela concessão de dinheiro de crédito pelas troikas (FMI, BCE e CE), condicionada a imposições políticas de austeridade, e pela recompra de títulos de dívida pelo BCE no mercado secundário, a decisão saiu do campo estritamente económico para o campo político. Hoje, os credores são maioritariamente instituições internacionais e países, e alguns também fortemente endividados, como Portugal, por exemplo, são credores de outros ainda em pior situação, como a Grécia, o que transforma o perdão dessa parte da dívida em perda para esses países.

A solução para o problema das dívidas públicas, portanto, terá de sair de decisões políticas da União Europeia baseadas na solidariedade, se é que isso ainda constitui um valor a preservar. Doutro modo, restará aos países fortemente endividados, nomeadamente, a Grécia e Portugal, o incumprimento dos prazos de pagamento dos encargos com as suas dívidas ou a saída da moeda única e o retorno a moedas nacionais desvalorizadas, adoptando unilaterais moratórias, a redenominação das dívidas nas respectivas moedas e, em último caso, o não pagamento. As consequências de decisões deste tipo são imprevisíveis, e por enquanto quem as defende não tem possibilidade de vir a constituir governo. Daí que mesmo na Grécia o partido ganhador das eleições, o Syriza, já não as defendesse e tivesse moderado o seu discurso.

Os previsíveis resultados eleitorais na Grécia suscitaram grandes receios, infundados, diga-se, nas direitas políticas europeias, que não se cansaram de propalar as mais variadas desgraças que adviriam da vitória eleitoral das esquerdas políticas e de efectuarem pressões diversas, através de recados difundidos pelos media, chegando a apelidar de radical de extrema-esquerda o partido ganhador, sintomas evidentes de quanto receiam o exercício democrático pelos povos quando o antevêem de resultados desfavoráveis para os apaniguados e ilustrativos da sua tacanhez ideológica, raiando o autoritarismo anti-democrático. E o mais estranho foi muitas dessas pressões terem partido de burocratas sem qualquer legitimidade política democrática.

As esquerdas políticas portuguesas, ao contrário, exultaram com a vitória eleitoral do Syriza, embandeirando em arco, como é habitual e tão do seu agrado. Perante as dificuldades que o Syriza tem pela frente, tanto internas, para implementar as reformas necessárias para acabar com a colonização da administração pública pelas clientelas partidárias, para reverter a caótica situação de corrupção endémica, para reduzir drasticamente a elevadíssima evasão fiscal e para aumentar a receita tornando eficaz a cobrança dos impostos, como externas, com a forte oposição à reestruturação da dívida grega por parte dos burocratas de Bruxelas e de alguns políticos que parece apenas saberem fazer contas de merceeiro, poderemos estar perante mais um caso de entusiasmo passageiro, e a desilusão poderá não tardar, como em tantos outros casos.

A crise política aberta na UE pelo novo Governo grego ao anunciar a intenção de não aceitar outro programa de resgate da troika e pretender mais uma reestruturação da dívida pública do país, que devido à depressão económica agravada pelas medidas de austeridade se tornou impagável, seria uma boa altura para um plano europeu de reestruturação das dívidas públicas dos países membros da moeda única mais endividados. Esperemos que o simples bom senso penetre nas cabeças duras dos burocratas e guie os políticos de vistas curtas, para que não se perca mais uma oportunidade para a saída da grave crise económica em que estamos mergulhados. E esperemos também que os dirigentes políticos dos países membros da UE reflictam seriamente sobre o estado em que se encontra a União com o abandono progressivo do projecto político democrático que presidiu à sua criação e ao colocar-se declaradamente ao serviço do capital financeiro.