segunda-feira, 27 de abril de 2015

25 de Abril de 1974: golpe de Estado militar ou revolução social?


25 DE ABRIL DE 1974:
GOLPE DE ESTADO MILITAR OU REVOLUÇÃO SOCIAL?



José Manuel Correia


1. Interpretações sobre o golpe de Estado militar

Entre militantes partidários e historiadores, existem duas visões principais acerca da caracterização do golpe de Estado militar ocorrido em Portugal em 25 de Abril de 1974 e do período de dezanove meses que se lhe seguiu até 25 de Novembro de 1975, as quais têm vasta repercussão na opinião pública. Para a generalidade daqueles conotados com as direitas políticas, tratou-se de uma revolução e, nada mais, nada menos, do que de uma revolução comunista. Apesar de naquele período os comunistas não terem tomado o poder político, de forma aberta ou encapotada, a mera tentativa, se é que existiu, é suficiente para a tomarem por realidade, e com base nessa presunção assim classificarem esse período conturbado da nossa história contemporânea. Há excepções, que classificam o golpe de Estado militar não como revolução mas como transição de um regime autoritário para um regime democrático, e que atribuem a sua autoria ou direcção a generais descontentes com a política seguida pelo último primeiro-ministro do regime corporativo-fascista Marcelo Caetano, como defende o historiador-jornalista Rui Ramos (em interpretação aparentemente bizarra, mas próxima da realidade, porque apesar de desencadeado e dirigido por capitães e majores teve o beneplácito de dois dos mais proeminentes chefes militares, um deles conhecido pelas suas ambições políticas). Para aqueloutros conotados com as esquerdas políticas as classificações são um pouco mais variadas. Para os comunistas, sejam os ortodoxos, sejam os de algumas variantes maoistas, em sintonia com as análises dos respectivos partidos, tratou-se de uma revolução, mais concretamente, para os primeiros, de uma revolução democrática e nacional, e, para os segundos, de uma revolução democrática; por ambos foi também considerada uma revolução popular, devido ao envolvimento de amplas massas populares, de imediato e espontâneo, no apoio prestado aos militares revoltosos e, depois, na luta pelo aprofundamento de medidas constantes do programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) e pela adopção de muitas outras que dele não constavam, cujo desenrolar foi designado por processo revolucionário em curso (o famoso PREC).

Os partidos comunistas, em geral, são um pouco mais pormenorizados nas análises e assertivos nas classificações. O PCP, que agrupa os comunistas ortodoxos, caracterizou também aquela revolução democrática e nacional, pelo desenvolvimento atingido, como sendo uma revolução democrática a caminho do socialismo, uma inovação em relação aos cânones do marxismo-leninismo; e, mais tarde, perante a dificuldade e o embaraço para a encaixar na tipologia ortodoxa e os revezes que deixaram o socialismo cada vez mais longe ficou-se pela ambígua designação, mais prosaica e inócua, de revolução de Abril com que ainda hoje a baptiza. Os partidos maoistas praticamente desapareceram da cena política (resta o PCTP-MRPP, que persiste, ainda que bem mais comedido e menos folclórico, e que tem a seu crédito, verdade seja dita, não ter caracterizado o golpe de Estado militar como sendo uma revolução) e, que saiba, nada mais disseram de novo sobre o tema. Ocupando o seu espaço emergiu a corrente comunista trotskista, que embora sem expressão como agrupamento político autónomo e dividida por diversas obediências existe nessa espécie de partido-movimento que dá pelo nome de Bloco de Esquerda e num ou noutro grupúsculo inexpressivo, dispondo de múltiplos adeptos dispersos pelas cátedras universitárias e pelas redacções de algumas publicações periódicas.

São precisamente historiadores conotados com a corrente comunista trotskista que se têm debruçado ultimamente sobre a análise e o significado do golpe de Estado militar de 25 de Abril de 1974 e da crise política que ele espoletou. Alguns dos trabalhos que têm produzido são teses académicas, das quais é de esperar maior rigor conceptual e no tratamento dos dados do que o usado nas simples reflexões ou ensaios de interpretação não sujeitos à prova da avaliação escolar por pares especialistas na matéria. A concepção defendida nesses trabalhos, de certo modo, é original, não acompanhada por outras correntes comunistas, apesar de tudo, mais realistas: o golpe de Estado militar teria dado origem ao desenvolvimento de uma revolução social, ainda que uma revolução social não vitoriosa, não concluída, visto os revolucionários terem saído dela derrotados. Não é clarificado de que revolução social se trataria, se de uma revolução comunista proletária, conceito partilhado pelo trotskismo com o leninismo, se de uma mais modesta revolução democrático-popular oriunda do dimitrovismo em versão revista e adaptada do leninismo; depreende-se que se trate da revolução comunista proletária, por ser a defendida pelo seu mentor Trotski, que repudiava o estalinismo-dimitrovismo da Internacional Comunista (IC), e por os apontados protagonistas daquela revolução serem os trabalhadores assalariados. Constitui uma concepção próxima da defendida pelas direitas políticas, com a diferença de que para aquelas a pretensa revolução comunista era conduzida pelo PCP, enquanto para a corrente comunista trotskista a revolução era levada a cabo pelos trabalhadores (talvez ao sabor das ondas do romantismo revolucionário que pululava nalgumas cabecinhas pueris) e o PCP se opunha a ela.

Segundo esta concepção, tal como a das direitas políticas, o actual regime de democracia liberal representativa e parlamentar teria nascido da derrota da putativa revolução comunista proletária. O principal argumento usado é o de que durante o período que se seguiu ao golpe de Estado militar, e mais acentuadamente depois do golpe spinolista de 11 de Março de 1975 e até à quartelada de 25 de Novembro desse ano, teria existido uma crise revolucionária, uma situação de duplo poder, em cujo auge, atingido no “verão quente” de 75, os trabalhadores assalariados — através de instituições próprias de poder que tinham criado, as comissões de trabalhadores e as comissões de moradores, alternativas às do Estado burguês — teriam disputado o poder político à burguesia. Esta concepção tem sido defendida por cá, entre outros, por António Simões do Paço e por Raquel Varela, e, no Brasil, por Valério Arcary (que vivendo em Portugal na altura dos acontecimentos presenciou alguns). Varela dedicou-lhe mesmo dois trabalhos de maior fôlego, em cujos títulos está patente a ambiguidade com que designa a suposta revolução social: "revolução dos cravos", em A História do PCP na Revolução dos Cravos (Lisboa, Bertrand Editora, 2011), baseado na sua tese de doutoramento, e "revolução portuguesa", em História do Povo na Revolução Portuguesa, 1974-75 (Lisboa, Bertrand Editora, 2014).

2. A errada concepção marxista da revolução social

Um traço comum aos diversos autores que defendem esta concepção é o pouco rigor com que usam o conceito de revolução social. Neste aspecto, não vão além das concepções marxistas, nas quais a revolução social é reduzida à sua componente de revolução política. Num outro texto abordei mais detalhadamente a errada concepção marxista da revolução social e avancei uma outra, que respigo para aqui de forma muito sucinta. A revolução social é um processo longo de transformação da organização económica, ideológica e política da sociedade, que começa na esfera económica — com a emergência de novos tipos de relações de produção, novos modos de produção ou formas de organizar o trabalho e de repartir o produto, e das classes sociais que as protagonizam — e que se estende depois para a esfera ideológica e política, com a difusão de novas ideias e valores e a conquista do poder de Estado, a reconceptualização do seu ordenamento jurídico e a reorganização das suas instituições, para adequá-lo às necessidades de expansão e de aperfeiçoamento das novas relações de produção emergentes. A revolução social, portanto, é um processo de transformação social que se desenrola em duas grandes fases: uma primeira fase de revolução económica e uma outra de revolução ideológica e política. Os seus protagonistas são classes sociais dirigentes de tipos de relações de produção que coexistam na sociedade. Na fase de revolução económica, uma classe social emergente, dirigente de relações de produção de tipo novo estabelecidas numa esfera produtiva nova (nos primórdios do modo de produção capitalista, a circulação das mercadorias), colmatando uma lacuna existente para melhorar o escoamento da produção em crescimento, procura, depois, expandi-las para as esferas tradicionais da produção (a produção utensiliária e novos sectores produtivos de meios de produção e de circulação e a produção de meios de subsistência), neste caso, em concorrência com a classe dirigente das relações de produção dominantes; na fase de revolução ideológica e política, a classe social dirigente emergente que passou a dominar a economia, ou que aspira vir a dominá-la, difunde as suas ideias e valores e disputa o poder de Estado à classe social dirigente que tendo perdido o domínio económico, ou estando em vias de perdê-lo, ainda domina a ideologia e a política.

Até que a revolução social entre na fase de revolução política, em geral, decorre a vida de algumas gerações, tal o tempo exigido pelo desenrolar da revolução económica, pela expansão das novas relações de produção, e da revolução ideológica, pela difusão e aceitação das novas ideias, conceitos e valores, e seja atingido o ponto em que as concepções jurídicas e a organização institucional do Estado constituam entraves para a continuação dessa expansão, colocando na ordem do dia a necessidade da conquista do poder. A revolução política, por seu lado, também não se restringe ao acto da tomada do poder, seja por reformas, através de negociações e de compromissos de partilha, seja por rupturas e revoltas insurreccionais, e estende-se no tempo, à medida que a classe dirigente em ascensão que conquistou o poder vai adequando as concepções jurídicas e a organização institucional do Estado aos seus interesses, de modo a possibilitar-lhe tornar-se a classe social dominante. Nesse decurso, a diferenciação de interesses económicos e de perspectivas ideológicas e políticas entre fracções da classe dirigente emergente pode ocasionar também lutas políticas entre elas, tal como interesses divergentes entre classes dirigentes e classes exploradas ou dirigidas ocasionam igualmente lutas políticas. Em rigor, a designação de revolução política deveria referir-se, com inteira propriedade, apenas às disputas pelo poder de Estado entre classes sociais dirigentes de tipos distintos de relações de produção, mas devido aos grandes interregnos temporais entre essas situações revolucionárias é frequentemente usada para referir as lutas pelo poder entre fracções da classe dominante que procuram adaptar a organização do Estado aos seus interesses e perspectivas particulares. E dado que a burguesia instituiu a democracia como forma de legitimação do seu poder, as revoluções políticas que essa classe social dirigente levou a cabo como corolário da sua revolução social têm sido designadas por revoluções democráticas.

O marxismo fez uma interpretação ecléctica da revolução social: se, por um lado, a restringiu à componente de revolução política, por outro, englobou na revolução política as lutas económicas e políticas entre a classe dominante e a sua principal classe explorada ou dirigida, no caso, as lutas entre a burguesia e o proletariado. Compreende-se que assim tenha acontecido, quer porque o reducionismo correspondia à interpretação dominante, quer porque o alargamento da abrangência lhe tornava possível fundamentar, ao arrepio da evolução histórica, a designação de classe social revolucionária com que desde a proclamação panfletária Manifesto do Partido Comunista, de 1848, classificava o proletariado, a classe social dominada e explorada do modo de produção capitalista e à qual atribuía a missão da conquista do poder político para implantar um novo modo de produção, sem exploração do homem pelo homem, o comunismo. Deste modo, a própria revolução social proletária ficava reduzida à componente de revolução política, porque a revolução económica fora entretanto efectuada pela burguesia com a implantação e a expansão do capitalismo. O desenvolvimento do modo de produção capitalista conduziria ao avolumar das suas contradições internas ao zénite, nomeadamente, a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade e as relações de produção salariais ou capitalistas, e aos trabalhadores assalariados bastaria a tomada do poder político para resolverem aquela imaginada contradição. O desenvolvimento das forças produtivas seria de então em diante assegurado pela propriedade social dos meios de produção, configurada como propriedade estatal, e embora o salariato se mantivesse os trabalhadores não seriam já trabalhadores assalariados, mas proprietários dos meios de produção, e a exploração acabara. A crença nesta errada concepção da revolução social faz com que ainda hoje os adeptos marxistas continuem persuadidos de que a conquista do poder de Estado, a revolução política, é condição suficiente para a levar a cabo. É condição necessária, mas não suficiente; e é necessária para concluí-la, não para iniciá-la. A conquista do poder de Estado, a revolução política, é necessária para que uma classe social emergente na base económica da sociedade, dirigente de novas relações de produção que aí se estabeleceram, promova melhor a expansão e o aperfeiçoamento dessas novas relações de produção, removendo os entraves que as concepções ideológicas e políticas correspondentes às velhas relações de produção permanentemente lhe colocam.

3. A revolução social proletária: o comunismo assalariado

Durante muitas décadas, a fábula da revolução social proletária foi apresentada como constituindo um determinismo histórico, quando nada na História a determinava, antes pelo contrário, e não passava de uma utopia idealista fundada na revolta contra as miseráveis condições de vida a que o capitalismo em expansão vertiginosa sujeitava os milhões de trabalhadores assalariados, explorados pela burguesia sem consideração nem piedade numa época em que nunca se produzira tanto, tantas novidades e a ritmo tão crescente. E o estudo dos instrumentos económicos em que se fundaria a exploração e dos meios através dos quais a burguesia exercia a dominação política da esmagadora maioria da população, levado a cabo por membros esclarecidos da classe dominante, mas marginais, certamente influenciados pela indignação genuína suscitada pelas degradantes condições de existência dos trabalhadores, parecia conferir legitimidade aos desejos de mudança manifestados e às revoltas desencadeadas pela parte mais aguerrida da sociedade — primeiro, o operariado de ofício das oficinas, das manufacturas e das minas, mas depois também a grande massa operária das fábricas, especializada apenas em pequenas tarefas do trabalho dividido e de rápida aprendizagem. A necessidade e a possibilidade de grandes mudanças económicas e políticas pretendidas pelos explorados, a sua revolução social, eram assim dotadas de uma pretensa credibilidade científica. Um futuro radioso deixava de ser apenas um sonho ou uma ardente esperança e tornava-se certeza predita pela ciência.

Fortalecida por um conhecimento mais aprofundado dos mecanismos da exploração económica e da dominação política da burguesia, uma sentida utopia voluntarista foi facilmente transformada em profecia, porvir certo e seguro como certo é o Sol aparecer todos os dias e seguro nascer de um lado e se pôr do outro. Doravante, dizia Marx, o profeta, do que se tratava não era interpretar o mundo, mas transformá-lo, não esperar que acontecesse, mas fazer acontecer. Faltava, talvez, que o capitalismo se desenvolvesse ao ponto de as suas contradições atingirem o limite. Mas até isso seria esperar demasiado, e novas teorizações apontavam a possibilidade da eclosão da revolução social proletária mesmo em formações sociais atrasadas no desenvolvimento económico e político, onde o capitalismo não era o modo de produção maioritário e a burguesia não conquistara o poder ou não consolidara a detenção do poder. Bastava constituírem o elo mais fraco da cadeia imperialista. Aí, com o proletariado aliado à grande massa do campesinato ainda sujeito à servidão ou às suas formas transformadas (os foros, as parcerias, o arrendamento com pagamento de apenas parte da renda em dinheiro, etc.), a revolução social proletária desenrolar-se-ia sob a forma de aliança operário-camponesa, isto é, realizando também a revolução democrático-burguesa.

Foi precisamente sob a forma de aliança operário-camponesa que decorreu, na Rússia, em 25 de Outubro de 1917 (pelo calendário juliano lá vigente na época, correspondente a 7 de Novembro do calendário gregoriano vigente na Europa Ocidental e adoptado pouco depois pelo governo revolucionário bolchevique), a primeira revolução socialista proletária vitoriosa, através da qual foi implantado um regime político que duraria mais de setenta anos (1917-1991). A revolução proletária eclodiu ali devido à existência de condições favoráveis excepcionais e à audácia estratégica da fracção mais radical dos comunistas locais, organizados no Partido Operário Social-Democrata (Bolchevique) da Rússia (depois, Partido Comunista (Bolchevique) da Rússia), e apesar das muitas vicissitudes e da dura guerra civil com que foi confrontada (de 1918 a 1921) — financiada do exterior e com o envolvimento de exércitos estrangeiros na ajuda à reacção interna — saiu vitoriosa pelo apoio do campesinato à causa da revolução.

No vasto Império do Czar Nicolau II, na viragem do século XIX para o novo século as relações de produção capitalistas eram ainda minoritárias, difundidas no comércio e nuns quantos polos de forte concentração industrial, mineira e petrolífera, em geral dominados pelo capital estrangeiro (igualmente o maior credor do Estado czarista), face às tradicionais relações de produção comunitárias na produção agrícola em redor das aldeias e às relações de produção tributárias de há muito estabelecidas na grande propriedade fundiária, ainda que estas últimas tivessem sido abolidas nominalmente menos de cinquenta anos antes, mas persistissem atenuadas sob formas diversificadas devido à lenta penetração das relações de produção capitalistas no campo. A burguesia russa constituía uma classe social frágil, dividida entre o compromisso com a aristocracia, aceitando a autocracia com algumas reformas políticas, e a ruptura com ela e a implantação da democracia representativa, vacilando entre a reforma e a revolução. Essas fragilidades ficaram patentes com o fracasso da sua revolução democrática de 1905 (desencadeada no rescaldo da derrota da Rússia na guerra com o Japão), e só viriam a ser superadas em parte mais de uma década depois.

A revolução democrática de Fevereiro de 1917, que depôs o Czar mercê duma conjuntura política favorável proporcionada pelos desaires da participação da Rússia na Primeira Guerra Mundial, acabaria constituindo uma das últimas revoluções burguesas a eclodirem num grande país europeu. Mas a tardia revolução democrática russa fez com que a burguesia fosse confrontada com reivindicações de amplas massas proletárias e camponesas com que não contava e que não podia satisfazer ao jeito pretendido por estes novos actores sociais. O fim da guerra, desejado por milhões de jovens soldados, devido à situação de desvantagem da Rússia no campo de batalha implicaria perdas territoriais e o desmembramento do velho Império, desfecho de todo inaceitável; a reforma agrária radical, como pretendida pela fracção de esquerda do Partido Socialista Revolucionário em nome do campesinato, dando a terra a quem a trabalhava, poria em causa o sagrado direito de propriedade; a criação de emprego, como exigiam os muitos milhares de soldados desmobilizados, deparava-se com os receios dos capitalistas e com a escassez de capital disponível para reconverter as indústrias de guerra e orientá-las para a produção de meios de produção, que grande parte dos pequenos produtores agrícolas, além do mais, ainda não via como necessários ou não poderia pagar; melhores salários e redução dos extensos períodos de trabalho, como pretendiam os operários fabris da grande indústria, reduziria a taxa de lucro, já sacrificada em parte com o atraso dos pagamentos das encomendas estatais de material bélico; e a regularização do abastecimento público de meios de subsistência e de matérias-primas industriais, revertendo a grande penúria de bens de primeira necessidade e a desorganização da produção industrial, agravadas desde o início do ano, reclamadas pelas amplas massas trabalhadoras nos grandes centros urbanos industriais, escapava totalmente às possibilidades governamentais. Assolada pelo fervilhar da irrupção de greves e da criação de comissões de trabalhadores nas fábricas, reivindicando alguma participação na gestão do processo produtivo, uma novidade inadmissível para o patronato até aí omnipotente, e pela intervenção política dos novos actores sociais, que para exigirem ao Governo Provisório a satisfação das suas reivindicações mais urgentes se foram organizando, à semelhança do que ocorrera em 1905, sob as mais diversas formas de assembleias representativas ou conselhos (os sovietes), a burguesia não mostrou capacidade para resolver os dilemas com que se deparou, vindo a confrontar-se com a agudização da crise política e militar em que exercia o poder e com a eclosão de um golpe de Estado militar desencadeado pelas esquerdas políticas mais radicais em nome dos operários e dos camponeses.

Outras revoluções socialistas proletárias, desencadeadas pouco depois (1918-19), na Alemanha e na Hungria, através de insurreições operárias que organizaram o poder político na forma de conselhos, foram rapidamente derrotadas, e a própria revolução na Rússia atravessou grandes dificuldades. Depois de avanços e de recuos, da perda de aliados e de graves insuficiências da produção, que não garantia o abastecimento público, o Partido Comunista instituiu a chamada Nova Política Económica (NEP), que constituía um recuou em relação ao Comunismo de Guerra que falhara, dando novas condições para o exercício da economia privada. O socialismo, a produção baseada na estatização da economia, mostrara-se totalmente inviável num país atrasado no desenvolvimento económico e político, onde o capitalismo não constituía ainda o modo de produção dominante e a burguesia não chegara a realizar a revolução democrática para favorecer a sua expansão e aperfeiçoamento. Mas o capitalismo privado, nas condições limitadas em que era permitido e sem recurso aos capitais externos vultuosos susceptíveis de possibilitarem um rápido desenvolvimento económico (devido aos receios e à desconfiança dos capitalistas locais e aos embargos e boicotes das potências capitalistas da época), também não constituía a solução necessária. O impasse seria resolvido nos finais da década de vinte com a aprovação do primeiro Plano Quinquenal (1928-32) e a adopção da chamada colectivização forçada: a nacionalização das poucas grandes empresas industriais que restavam e a criação de empresas estatais na indústria, na agricultura e nos serviços, assim como a integração compulsiva do campesinato independente em cooperativas, e a orientação da economia, sujeita a planificação centralizada, para a produção de meios de produção.

Começava, então, a institucionalização da fase socialista da revolução, no fundo, a verdadeira revolução socialista proletária, levada a cabo sob a direcção de Estaline no partido comunista e no Estado. Não deixa de ser irónico, por isso, que ele tenha vindo a ficar conhecido, principalmente, pela violência e o terror, que não pouparam apaniguados, de simples aderentes a dirigentes partidários, com que o socialismo foi institucionalizado e não por essa institucionalização. Se por mais não fosse, tal facto seria suficiente para guindar Estaline ao cume da estima e da admiração de grande parte dos trabalhadores de todo o mundo, mas ele granjeou-lhes a afeição ou a mera simpatia ainda por outros feitos, como sejam a resistência à guerra de agressão nazi-fascista e a emergência da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em que a revolução transformara o Império Russo) como grande potência na coligação das nações vencedoras da II Guerra Mundial. Intentando diabolizar o socialismo proletário, que destituiu os capitalistas privados da propriedade dos meios de produção, as burguesias de todo o mundo diabolizaram o homem, e o que hoje aparece associado à figura de Estaline, porque difundido à exaustão, é o aspecto odioso da falta de liberdades e do exercício do poder pela arbitrariedade e pelo terror que caracterizaram o socialismo proletário. Organizado sob a forma de estado totalitário e de capitalismo de Estado monopolista, o socialismo proletário acabaria por constituir a maior revolução social do século XX, transformando o Império Russo num conjunto de países modernos e medianamente desenvolvidos, apesar das limitações e dos bloqueios da forma estatal do capitalismo monopolista. O que a burguesia russa não conseguira realizar em séculos, os trabalhadores, sob a direcção duma fracção da pequena-burguesia, fizeram-no em menos de sete décadas: o desenvolvimento do capitalismo.

Ao contrário do que a ideologia marxista previra, as revoluções sociais proletárias não ocorreram nos países capitalistas mais desenvolvidos, mas em países atrasados no desenvolvimento económico e político. E a revolução social proletária vitoriosa aconteceu na Rússia mercê de circunstâncias excepcionais: porque ali a revolução social constituía uma necessidade, nomeadamente, a fase de revolução política da revolução social burguesa, e porque a burguesia não teve capacidade para levar a cabo essa sua revolução política. A partir de então, não mais houve revoluções sociais proletárias, vitoriosas ou derrotadas. Houve algumas revoluções democráticas, que modernizaram países atrasados, e variadíssimas revoltas democráticas e nacionais, que transformaram países ocupados e colónias em países soberanos e independentes, a maioria envolvendo insurreições armadas e lutas de libertação, algumas de longa duração, designadas frequentemente pelos comunistas por revoluções democráticas e nacionais, e que implantaram regimes socialistas ou comunistas, isto é, regimes políticos totalitários, de ditadura de partido único e de economia maioritariamente estatizada e planificada centralmente. Em nenhum caso, porém, ocorreu uma revolução social verdadeiramente nova, que instituísse relações de produção diferentes das relações de produção salariais ou capitalistas.

O que ocorreu foram revoluções e revoltas políticas em sociedades atrasadas no desenvolvimento económico e político, nuns casos, que desbloquearam a expansão e o aperfeiçoamento do capitalismo, e, noutros casos, para além disso, que transformaram etnias em nações, nações em Estados e colónias em países independentes ou que restituíram a soberania a países ocupados. Perante a fragilidade das burguesias locais, algumas dessas revoluções e revoltas políticas foram dirigidas por partidos comunistas, sós ou coligados com outros pequenos partidos, e outras por partidos nacionalistas, eles próprios correspondentes a coligações muito eclécticas de fracções de classes diversas, todos influenciados em maior ou menor grau pela ideologia marxista e pelas suas concepções acerca da organização económica e política da sociedade: expropriação dos capitalistas individuais (nalguns casos, apenas dos grandes capitalistas, se os havia) e atribuição ao Estado da função de organizador colectivo da produção social, sob a forma de capitalismo de Estado monopolista, e exercício do poder por formas ditatoriais. Por isso — porque não corresponderam a qualquer revolução social nova, mas apenas a revoluções e revoltas políticas levadas a cabo em sociedades atrasadas no desenvolvimento económico e político — os regimes políticos delas saídos só puderam basear-se nas relações de produção salariais ou capitalistas, rompendo com os entraves que bloqueavam a sua expansão e aperfeiçoamento. E não admira que assim tenha acontecido, quer porque não existe com expressão económica de relevo outro modo de produção mais moderno, quer porque o próprio socialismo e comunismo marxistas mais não são do que capitalismo de Estado monopolista. Daí que muitos desses regimes, apelidando-se de comunistas, de socialistas ou de populares, tenham instituído a estatização da economia como motor do desenvolvimento económico.

Como disse noutro lado, a “propriedade estatal dos meios de produção, constituindo um monopólio total, e a planificação centralizada da economia, determinando administrativamente o investimento, a produção, o consumo, o emprego e os preços, que em vez da regulação dos mecanismos do mercado os subvertia; a ausência de concorrência entre unidades produtivas internas, e destas com o exterior, que não impulsionava a inovação; a escassez de capitais externos, que não facilitava o investimento em sectores prioritários; as limitações no acesso comercial à tecnologia mais moderna, devido ao bloqueio imposto pelos países capitalistas mais desenvolvidos; o reduzido volume de trocas desiguais vantajosas com mercados externos, devido à falta de competitividade e às restrições comerciais adoptadas por muitos países, confinando-se as trocas, durante muito tempo, a alguns países comunistas e a outros não-alinhados, em vias de desenvolvimento, e praticamente a matérias-primas, a armamentos e a umas poucas mercadorias convencionais; a ausência de liberdade sindical, de reivindicação salarial e de participação na organização dos processos de trabalho e nas decisões da gestão empresarial, permitindo a manutenção dos salários baixos, que assim não pressionavam os custos de produção e não incentivavam ao aumento da produtividade, conduzindo ao desperdício de trabalho disfarçado de pleno emprego, tudo isto, resultante das características do modelo e da sua conjugação com o contexto político internacional da sua aplicação, não possibilitaria aos regimes comunistas suplantarem os níveis de desenvolvimento dos regimes de capitalismo privado concorrencial de mediano nível de desenvolvimento”.

“Apesar das elevadas taxas de acumulação conseguidas inicialmente com o recurso a duras condições de exploração — as quais lhes permitiram recuperarem grande parte do atraso de que partiam, mas que ficaram muito aquém da capacidade de centralização de capitais do capitalismo privado concorrencial, que afluíam das poupanças e dos sítios mais díspares, e das potencialidades de renovação dos meios de produção e de promoção da inovação que proporcionavam — o desenvolvimento das forças produtivas dos regimes comunistas foi o que se sabe: permanente dependência tecnológica dos países de capitalismo privado concorrencial, com a tecnologia mais avançada a ter de ser comprada no mercado negro ou a ser surripiada pela espionagem de adeptos ou de companheiros de jornada que traíam os seus países, devido aos bloqueios comerciais; poucas ou nenhumas inovações científicas e tecnológicas de relevo, assim como desaproveitamento das invenções provenientes da criatividade individual, por desconfiança em relação à inovação e por receio do risco; aplicação da tecnologia mais actual quase exclusivamente na produção militar, sem aproveitamento noutros ramos, consumindo recursos vultuosos que não eram reproduzidos; baixa produtividade do trabalho, realizando-se o aumento da produção principalmente pela manutenção da jornada e pelo aumento do emprego e dos ritmos do trabalho; penúria e má qualidade de muitos bens essenciais, escasseando até os bens de luxo mais modernos ambicionados pela oligarquia, o que originava um florescente mercado paralelo e o alastramento da corrupção, etc., etc”.

O travesti do capitalismo de Estado monopolista, o socialismo ou o comunismo, tinha desde o início um fim anunciado, ainda que sem prazo marcado. Tarde ou cedo, a falência da utopia proletária convertida em profecia seria uma fatalidade, que os crentes se recusavam a admitir sequer como possibilidade, apesar dos múltiplos sinais da persistência de arcaísmos e de atrasos. A hecatombe acabaria por deixá-los estupefactos e inconsoláveis, e ainda hoje os fanáticos parecem não aceitar a inevitabilidade da crua realidade, atribuindo o fim tão inglório do sonho longamente acalentado e incensado às mais mirabolantes cabalas e teorias da conspiração geo-estratégica imperialista.

Alamada, 27 de Abril de 2015.


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