segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Sobre a decadência e a superação do capitalismo


SOBRE A DECADÊNCIA
E A SUPERAÇÃO DO CAPITALISMO



José Manuel Correia


1-A queda tendencial da taxa de lucro.

O conceito de lucro é antigo; já a sua obtenção à taxa mais elevada como objectivo deliberado e a escrituração e contabilidade que permitem a sua fácil verificação são mais recentes. É a existência do lucro que possibilita a acumulação de riqueza ou de capital (na forma de meios de produção). No “capitalismo realmente existente” ocorrem taxas de lucro diversificadas (nas empresas, nos ramos da produção e na produção social global, quer numa formação social específica, quer na sociedade em geral), embora sujeitas, em cada formação social, a uma eventual e transitória equilibração, constantemente procurada, mas logo desfeita pela concorrência no interior dos diversos ramos da produção social e pela mobilidade dos capitais entre eles. A sua dimensão depende das circunstâncias, nomeadamente, das oportunidades de exploração dos trabalhadores assalariados (neste caso, da taxa de exploração ou de apropriação de valor do trabalho produzido pelos trabalhadores) e de toca desigual vantajosa efectuada com eles, das transferências de valor nas trocas desiguais vantajosas com modos de produção anteriores e, em cada formação social, também com mercados externos.

A lógica de desenvolvimento do objecto teórico, formal ou abstracto, “modo de produção capitalista” contém uma contradição insanável, que se patenteia na tendência para a queda da taxa de lucro a longo prazo (acabando este por constituir o seu prazo histórico de validade). Se a produtividade do trabalho humano é um facto inegável ao longo da História, que o capitalismo tende a desenvolver incessantemente; se este desenvolvimento, resultante do aumento da composição orgânica do capital social, conduz ao crescimento do desemprego, por redução do rácio dos trabalhadores activos/inactivos; se, apesar do aumento da produtividade, se reduz a relação entre a taxa de exploração e a composição orgânica do capital; se num dado momento estas condições se verificam de forma irreversível — e se agravam, porque o crescimento efectivo da produtividade costuma ser concomitante com o aumento da produção (isto é, a produtividade não cresce com a produção constante) e parte crescente da produção não encontra escoamento — então a taxa de lucro de um dado capital social só pode decrescer. Se a taxa de lucro tende a diminuir é porque o modo de produção capitalista tende a perder a sua eficiência produtiva; se a diminuição se transforma de tendência em constante, a sua eficácia social esboroa-se. Esta é a lógica inerente ao funcionamento do objecto teórico “modo de produção capitalista”.

Embora esta lógica intrínseca e a contradição resultante se refiram a um objecto teórico, sem existência real concreta, é um facto inegável que elas se verificam também no objecto real concreto “capitalismo realmente existente”, ainda que neste o ritmo do seu desenvolvimento, porque alvo de contra tendências, seja muito lento e o prazo decorrente até à sua manifestação irreversível seja muito longo, dando-nos a ilusão de não existirem. Com a agravante de uma dupla ilusão, porque no objecto concreto complexo que é a realidade empírica — a “economia-política realmente existente” — o capitalismo não existe isolado, convivendo com modos de produção anteriores e, a partir de certa altura, com outros emergentes; a economia não se restringe a si própria, tem a sua bengala na política, com o papel indispensável da intervenção do Estado na atenuação das crises — através da redução ou da contenção dos salários, do consumo improdutivo de parte da produção do ramo dos meios de produção, nomeadamente, equipamentos militares e equipamentos sociais, das mais diversas ajudas directas e indirectas aos capitalistas transformados em parceiros beneficiários, dos acordos comerciais internacionais, das guerras de pilhagem de riquezas naturais e de destruição de meios de produção e de equipamentos sociais alheios (da simples pressão diplomática à ingerência política aberta ou encoberta, à proibição de trocas comerciais e à aplicação de sanções económicas e políticas a quem a viole, à intervenção armada declarada ou dissimulada e à ocupação militar), etc. — enfim, na regulação da taxa de lucro, daí a designação mais correcta de economia-política; e as regras da ética nos negócios e a liberdade são a todo o tempo subvertidas pela trapaça e pela coerção mais grosseiras.

Por acréscimo, o “capitalismo realmente existente” só há poucos anos começou a expandir-se globalmente sem entraves, conquistando mercados muito mais amplos, outrora fechados ou condicionados, e obtendo com esta expansão condições de exploração comparáveis às existentes há mais de meio século atrás nos países desenvolvidos, o que lhe permitirá durante mais algum tempo o escoamento do constante aumento da produção e a efectivação de trocas desiguais entre países com níveis de produtividade muito diferenciados, vantajosas para aqueles nos quais os valores dos custos de produção sejam menores (ou, sendo similares, os seus valores de troca e os seus preços sejam menores e lhes permitam aumentar a sua quota do mercado). Deste modo, as premissas que confirmariam a queda da taxa de lucro são subvertidas pelo aumento da taxa de exploração (pelos maiores períodos de trabalho e menores níveis dos salários nas novas zonas de expansão e pelos seus equivalentes provocados pelo retrocesso nas formas da prestação e nos níveis da retribuição do trabalho nos países desenvolvidos, com o aumento da precarização do emprego) e pelo crescimento da taxa de activos/inactivos (no interior do sistema globalizado), que operam uma grande recomposição da aplicação do capital social global e da sua lucratividade.

Partes deste capital, dantes aplicadas na mera especulação financeira e obtendo lucros fictícios (ou, melhor, em muitos casos, lucros de valor fictício, por não corresponderem a novo valor representado pelos títulos objecto da especulação, mas apenas à variação bolsista dos seus preços, por vezes manipulada por formas fraudulentas, constituindo, naqueles casos, simples transferências de dinheiro das perdas de uns como ganhos de outros), têm sido desviadas da especulação — esbanjadas umas em consumos ostentatórios, convertidas outras em riqueza sumptuária (que assim perdem temporariamente a sua condição de capital) e passando outras a encontrar aplicação como capital produtivo — contribuindo para a actual extensão global da produção e para o aumento efectivo da taxa geral de lucro. Esta nova fase do “capitalismo realmente existente”, pela recomposição operada no montante e nas aplicações do capital social, constitui como que um novo ciclo de expansão, comparável ao que os países mais desenvolvidos conheceram no pós-II guerra mundial na reconstrução do que o conflito destruíra, mas com maiores potencialidades, em função dos muitos milhões de pessoas envolvidas, que passam da condição de camponeses independentes inseridos em economias de subsistência ou de pequena produção à de modernos operários industriais e à de outras categorias de trabalhadores assalariados. Devido a estes factores, o “capitalismo realmente existente” ganha novo alento e o seu prazo histórico de validade acaba por sair prolongado em relação às previsões mais pessimistas.

Os estudos teóricos dedicados à questão da comprovação da tendência para a queda da taxa de lucro, por seu lado, são confrontados com uma dificuldade prática quase inultrapassável: é que o objecto de que eles se socorrem para esse fim e donde retiram os dados é a “economia-política realmente existente”, que não coincide com o “capitalismo realmente existente” nem, muito menos, com o “modo de produção capitalista”. Não admira, portanto, que não cheguem a conclusões irrefutáveis, por mais elaborados e complexos que sejam os modelos matemáticos a que recorram, porque os dados não são consistentes com o modelo. Desejar confirmar ou infirmar uma contradição insanável de um objecto teórico, formal ou abstracto, a partir da realidade empírica complexa (aqui, complexa no sentido de ser constituída por múltiplos modos de produção existindo deformados em inter-relação em múltiplas formações sociais) de que aquele não é inteiramente representativo, é como procurar comprovar o sexo dos anjos ou a existência de Deus.

Quando se aborda este tema é necessário fazê-lo com a cautela que merece. Convém não esquecer que a “economia-política realmente existente”, ainda que dominada pelo “capitalismo realmente existente” não se restringe a ele. Actualmente, em muitas bolsas do mercado persiste ainda a produção artesanal independente ou familiar, nomeadamente, no ramo dos meios de subsistência (na pequena produção agrícola e pecuária e nos serviços pessoais e de manutenção), que não estando sujeita à apropriação coerciva de trabalho e à expropriação de produtos do trabalho, como outrora ocorria no modo de produção tributário, e usando as categorias económicas do capitalismo (preço de custo, lucro, etc.) não se enquadra no "modo de produção capitalista", porque não forma os seus rendimentos, ou a maior parte deles, pela apropriação de valor ou de valor proveniente da exploração directa de trabalhadores, mas com a qual a produção capitalista efectua trocas desiguais (embora decrescentes em volume e em desigualdade); e emergem outras formas de produção não baseadas, ou não baseadas em exclusivo, no salariato, nas quais os trabalhadores não vendem o seu trabalho, nem o desenvolvem como trabalho subordinado ao comando do capitalista, mas vendem produtos do seu trabalho, cuja produção organizam a seu modo.

Estas novas actividades, por exemplo, produzindo mercadorias inovadoras (a maior parte delas sob a forma de produtos do conhecimento transformados em mercadorias informacionais), apresentam-se com a capacidade de gerar taxas de lucro muito elevadas, por transferência de valor nas trocas desiguais vantajosas com as actividades produtivas industriais típicas do capitalismo. Apesar de poderem ter custos de criação elevados, como resultado de muito trabalho infrutífero desperdiçado, os seus custos de reprodução e de comercialização são em geral baixos; o carácter de novas mercadorias possibilita aos seus produtores usufruírem de um período de ausência de concorrência e vendê-las por preços de monopólio; e devido à constante inovação, que rapidamente as torna obsoletas, novas mercadorias encontram um mercado em permanente renovação e em crescimento. Não é por acaso que a Microsoft, para dar apenas o exemplo mais notório de uma empresa produtora de mercadorias deste tipo, que se organiza como compradora de muitos produtos tecnológicos produzidos por trabalhadores independentes ou por pequenas equipas cooperativas, obtém lucros fabulosos.

2-Decadência do capitalismo.

Todos os modos de produção são históricos, como tudo nesta vida, a começar por nós, que nos julgamos dominadores do Mundo e da natureza sem nos apercebermos da nossa pequenez e fragilidade e, simultaneamente, da nossa complexidade. Como tal, constituem-se, desenvolvem-se e acabam por definhar e por perecer. Deste modo, eles emergem porque são dotados de maiores eficiência e eficácia, e desenvolvem-se, expandindo-se e aperfeiçoando-se, revelando a sua maior eficácia social, o que lhes permite alcançarem o domínio económico, e às suas classes sociais dirigentes o domínio ideológico e político; atingido o auge do seu desenvolvimento, à medida que a sua expansão estagna e depois regride (porque decresce a relação dos trabalhadores que emprega face à população em idade activa) e a sua eficácia interna eventualmente se degrada, entram em decadência, perdem a eficácia social que detêm, sendo substituídos nesse papel por outros, definham e perecem. Com o modo de produção capitalista e o domínio ideológico e político da sua classe social dirigente, a burguesia, não será diferente.

Muita gente ainda se ilude pensando que para um novo modo de produção entrar em cena o que existe tem de fechar as portas. Confunde a revolução social com a revolução política, esquecendo que esta é apenas a outra forma da economia ultrapassar as barreiras que lhe entravam o desenvolvimento; e confunde os protagonistas da revolução social com as classes sociais pertencentes ao modo de produção em decadência numa determinada fase histórica, ou, mais grave, atribui à sua classe social explorada o papel de classe revolucionária. Daí que nas profecias idealistas a primazia seja dada à componente política da revolução social. A do comunismo marxista ainda tentou justificar esta ilusão com as contradições intrínsecas do capitalismo, mas também ela não escapou à controvérsia: se as crises económicas cíclicas não o fazem desaparecer, torna-se necessário o empurrão da revolução política; se existe uma real tendência para a taxa de lucro decrescer, o colapso será inevitável e a revolução política assumirá foros de transição pacífica do poder. O Marx não se desenvencilhou deste magno problema e os marxistas enredaram-se nele ainda mais, atribuindo ambos às massas exploradas o protagonismo revolucionário, colocando a chave da transformação social no voluntarismo, no desejo de acabar com o regime que as explora, como se fosse a consciência dos indivíduos a determinar o seu ser social, e não o inverso, numa contradição do Marx consigo próprio, entre o que constatara e defendera e o que afirmava ser inevitável.

De há uns anos a esta parte, sucedem-se as proclamações do fim iminente do “capitalismo realmente existente”. Tais proclamações são de todo desajustadas, por irrealistas e emocionais, e não por acaso são provenientes dos inexpressivos partidos comunistas e da intelectualidade marxista — sempre apostados em chamar a atenção para a actualidade da profecia idealista do Marx e em manter acesa a chama da fé na revolução comunista — assim como da intelectualidade ainda mais radicalizada dos países desenvolvidos que anima os movimentos anti-globalização exprimindo os receios e a baixa dos rendimentos da pequena-burguesia (a chamada classe média) e dos trabalhadores assalariados provocados pelo aumento do desemprego, induzido pela deslocalização da produção para os novos mercados emergentes abertos pela globalização, e pela desregulação da prestação do trabalho e a consagração da precariedade do emprego nesses países. Esperar que os impactos da mudança que está ocorrendo com a expansão do “capitalismo realmente existente” não produzissem tais clamores seria de grande ingenuidade. Aos trabalhadores cada vez mais explorados e àqueles que foram lançados no desemprego persistente ou na miséria pouco mais resta do que gritarem a sua revolta e lutarem como puderem (de preferência organizados, se bem que com os precários, os desempregados e os que procuram o primeiro emprego os sindicatos se preocupem ainda menos do que com os trabalhadores permanentes) para reverterem ou atenuarem a sua difícil situação nos tempos conturbados que correm.

Ainda que a realidade empírica "economia-política realmente existente" seja mais complexa do que o objecto prático "capitalismo realmente existente", e a sua dinâmica também mais imprevisível, ela é por este determinada. E as características gerais do objecto prático "capitalismo realmente existente", assim como a sua lógica de funcionamento, por seu lado, estão aceitavelmente representadas pelo objecto teórico "modo de produção capitalista". As crises cíclicas de sobreprodução, cada vez mais intensas, de maior duração e extensão, com repercussão em maior número de formações sociais, são uma realidade; e, em muitas formações sociais, a sobre acumulação produtiva é visível pelo volume crescente do capital desviado para a especulação financeira, para o consumo ostentatório e para a acumulação de riqueza sumptuária, assim como a redistribuição da força de trabalho disponibilizada do processo imediato de produção por actividades de serviços e de intensificação da circulação das mercadorias não tem compensado a quebra da relação activos/inactivos (que apesar da redução da taxa de natalidade se agrava com o aumento da esperança de vida e com a inexistência de mais colónias de povoamento para onde remeter os inactivos em excesso). Falta ao modelo teórico a referência à política (através da intervenção do Estado do capital) na regulação da realidade empírica, nomeadamente, na regulação da taxa de lucro, mas aquela, como se sabe, assume contornos muito variados e alguns até surpreendentes.

Se a produção cresce e os activos decrescem, gerando crises de sobreprodução, a continuidade das condições da exploração só é possível destruindo capital e operando a sua recomposição, assim como aumentando a taxa de exploração. Isto é efectuado através das velhas receitas para as crises: desperdício da produção em excesso, inactividade ou destruição de meios de produção, aumento do desemprego, redução dos salários e guerra (que em simultâneo compensa alguns daqueles efeitos e, depois, expande o consumo). A recomposição do capital em cada crise de sobreprodução, porém, é feita numa nova base da produtividade, porque parte dos meios de produção é renovada imperiosamente, diferenciando-se das renovações desse capital calculadas em função das previsões da redução do custo e das possibilidades de escoamento do aumento da produção, e tem sido traduzida por crescimento líquido da produção. O aumento potencial da taxa de lucro proporcionado pela redução, por um lado, do capital produtivo efectivo após a destruição de meios de produção e, por outro lado, do custo de produção resultante da recomposição do capital social — por embaratecimento do preço dos novos meios de produção, por diminuição do número de trabalhadores empregados ou do preço do trabalho e pelo aumento da produtividade — fica condicionado ao consumo do aumento da produção pelo mercado externo.

Quando não existir mais mercado externo, isto é, quando pela liberalização total das trocas o mercado de cada formação social coincidir com o mercado global, as dificuldades de regulação em tempo oportuno, apesar dos meios computacionais de gestão em tempo real, farão com que as crises tenham o seu ciclo mais curto e os seus efeitos intensificados, pelo surgimento em qualquer formação social e o alastramento imediato a maior número de formações sociais interdependentes. Uma tal situação, dificultando a reprodução ampliada dos capitais, conduzirá a taxa geral de lucro para a descida até níveis não aceitáveis. No "capitalismo realmente existente" lá estará a política (e o Estado do capital) para operar a reconstituição das condições necessárias para a recondução da taxa de lucro a níveis aceitáveis, recorrendo às velhas receitas. A Rosa Luxemburgo apercebeu-se de algumas destas questões, e da insuficiência do modelo do Marx, mas formulou-as mal (identificou o mercado externo com o mercado dos modos de produção pré-capitalistas, que era como ele se apresentava ainda em grande parte na sua época) e avançou com explicações incorrectas (que a extinção do mercado dos modos de produção pré-capitalistas conduziria à impossibilidade de realização de parte do lucro e à crise permanente do capitalismo, o que em seu entender fundamentava a necessidade histórica da eclosão da revolução comunista proletária).

A decadência do “capitalismo realmente existente” e a sua superação, porém, são duas questões distintas, apesar de interligadas, que desde sempre têm sido misturadas e até confundidas; e a própria decadência tem sido muito mal definida, identificada quase em exclusivo com a queda irreversível da taxa de lucro ao invés de com a sobre acumulação do capital produtivo. Ora, a queda da taxa de lucro é um efeito de várias causas, não a causa de vários efeitos. Num determinado ramo da produção social, ela é, antes de mais, um efeito da concorrência capitalista que degrada os preços e, com isso, os lucros de alguns capitais; para contrariá-la, diferentes grupos capitalistas concorrentes, detendo posições de oligopólio na produção de mercadorias similares, não raramente se cartelizam, estabelecendo acordos formais ou informais sobre os preços dessas mercadorias e sobre as respectivas quotas de mercado, ou se associam para a produção de novos tipos de mercadorias ou, ainda, compram grupos concorrentes, integrando-os ou eliminando-os; no conjunto da produção social, além da repercussão do efeito da sua queda nos ramos, ela é também um efeito da sobreprodução resultante da excessiva capacidade produtiva instalada conjugada com níveis elevados da produtividade do trabalho, fruto da sobre acumulação do capital produtivo.

Além do mais, a taxa de lucro, frequentemente, é referida ao capital social global e não à sua parte de capital produtivo; neste caso, a crescente proporção no capital social global do capital financeiro especulativo, que não gera lucros reais quando os ganhos de uns constituem meras perdas de outros, contribui para a sua queda; e, geralmente, também não é tida em conta a distinção entre taxa de lucro (a relação do lucro com o capital empregado) e taxa de margem de lucro (a relação do lucro com o capital consumido num ciclo, ou conjunto de ciclos, de rotação da produção, por exemplo, anual), que faz com que a taxa de lucro vá aumentando à medida que a amortização do capital consumido vai reduzindo o capital empregado, apesar da eventual descida dos preços de venda, em geral menor do que aquela amortização, nem a distribuição dos lucros do mesmo grupo empresarial por múltiplas empresas, aparentemente sem qualquer relação com ele, dispersas por diversos países, consoante as conveniências fiscais, nem, muito menos, a pura e simples ocultação dos lucros por manipulação contabilística dos preços de custo de produção pela circulação fictícia das mercadorias. Mas mesmo a hipotética queda tendencial da taxa de lucro não constitui sintoma da decadência do “capitalismo realmente existente”.

O que deve entender-se por decadência do “capitalismo realmente existente” é a perda do domínio que as relações de produção capitalistas, baseadas na apropriação de valor proveniente da exploração dos trabalhadores assalariados, detêm na sociedade, e não forçosamente a perda da sua eficácia interna, que sai reforçada de cada crise económica cíclica por concentração do capital e à custa de graves efeitos sociais. A sobre acumulação de capital, apesar do desvio de parte cada vez maior do capital social da produção para a especulação financeira, para o consumo ostentatório e para a acumulação de riqueza sumptuária, com a redução dos activos empregados e a crescente disponibilização de força de trabalho em que se traduz, será a forma por que se manifestará a decadência social do capitalismo. Nem a situação de guerra permanente em que tenderá a existir — para ocupar alguma da juventude que não encontra outro trabalho, para consumir de forma improdutiva parte da produção do ramo dos meios de produção (sob a forma de equipamentos militares e sociais), para saquear riquezas naturais e destruir meios de produção e equipamentos sociais alheios (a quem depois os vencedores venderão a reconstrução), para provocar a instabilidade política e o derrube de regimes ou de governos hostis e para apoiar guerras civis que conduzam ao caos social ou para levar a cabo ocupações territoriais — nem o assistencialismo público com que tenderá a mitigar a miséria do número crescente dos desempregados permanentes nem a manipulação ideológica mais subtil, mas não menos embrutecedora, nem a suspeita e a vigilância constantes de toda a gente e a criminalização e repressão da reivindicação e do protesto poderão salvar o capitalismo da decadência social.

3-A superação do capitalismo.

A ausência de isomorfismo entre o modelo teórico e a realidade empírica pode conduzir-nos a pensar, erradamente, que o "capitalismo realmente existente" poderá ultrapassar indefinidamente as suas contradições, identificadas no modelo teórico. O ritmo a que elas se manifestam é lento, o prazo até que produzam efeitos irreversíveis é longo e a intervenção do Estado, procurando atenuar esses efeitos, é cada vez maior, o que agrava a nossa ilusão. E a expansão global do "capitalismo realmente existente" confere-lhe um novo fôlego momentâneo, que não lhe anulando as contradições vai diferir no tempo a sua manifestação. Só que também as fará irromper de forma acentuada e com efeitos irreversíveis. Então, não haverá mais mercado externo para onde escoar a sobreprodução, e a intervenção dos múltiplos Estados em defesa dos capitais locais (ou nominalmente neles sedeados) manifestar-se-á sob forma descoordenada, ou de grave contradição de interesses entre Estados nacionais, podendo conduzir ao retorno ao velho proteccionismo e aos acordos comerciais bilaterais, com o retrocesso quer para mercados internos nacionais quer para mercados internos um pouco mais alargados de uniões aduaneiras plurinacionais, ou ao desencadear de conflitos bélicos de consequências imprevisíveis.

É ilusório pensar que num Mundo desigualmente desenvolvido, no qual cada país sofre efeitos diversificados das contradições do “capitalismo realmente existente”, os trabalhadores tornados supérfluos não encontrem aplicação para o seu trabalho sob relações de produção novas, que se constituam como alternativa às que provocam a sua inactividade. As políticas keynesianas, promovendo a caridade pública e o pleno emprego artificial sob a direcção do Estado, tornado também assistente social e capitalista produtivo, ou as de capitalismo de Estado monopolista, transformando o Estado no capitalista colectivo, já provaram serem meros paliativos, soluções transitórias para situações de crise do capitalismo em países desenvolvidos ou de bloqueio do seu desenvolvimento em países atrasados. E os seus efeitos de longo prazo já comprovaram serem nefastos: dando a ilusão de que a vida social pode decorrer sem os sobressaltos das crises por acção da maior intervenção do Estado na regulação da economia ou na sua planificação centralizada, acabam por conduzir a sociedades totalitárias.

Em termos de evolução social, a alternativa ao “capitalismo realmente existente” não residirá certamente no capitalismo de Estado monopolista, sob que se apresentou a utopia comunista marxista. A História mostrou que aquele não passou de uma forma de acumulação forçada, que esgotou as suas virtualidades promovendo o desenvolvimento acelerado de países atrasados e trazendo-os para a modernidade capitalista num curto período histórico. Também não residirá na rejeição da mercadoria e do dinheiro (ou da função de moeda de troca geral que ele desempenha), como também previa, de certo modo, a utopia marxista, nem no repúdio do trabalho abstracto, como parece pretenderem fazer crer alguns neo-marxistas mais radicais (por exemplo, os agrupados em torno da revista alemã Exit), que metem no mesmo saco, não os distinguindo, o trabalho humano em geral (e o valor do custo da sua produção) e o trabalho assalariado (o trabalho subordinado trocado por salário, típico do capitalismo). E são escusadas, por infrutíferas, as especulações sobre as formas concretas como ela se processará.

O trabalho é a forma dos seres humanos existirem; o trabalho abstracto consumido na produção das mercadorias, o trabalho reduzido à sua substância e ao seu custo de produção, é também o fruto da divisão planificada em múltiplos e diversificados trabalhos concretos cuja coordenação e interconexão lhes aumenta a produtividade; e a troca mercantil e o dinheiro enquanto mercadoria equivalente geral facilitadora das trocas são instrumentos pré-capitalistas que ficaram constituindo progressos civilizacionais assinaláveis. Não é sequer imaginável que o progresso social se constitua através de um regresso à troca directa de meros excedentes ocasionais ou à dádiva, em substituição da troca mercantil. No Mundo moderno de há muito o mercado confirmou as suas potencialidades no desenvolvimento e na regulação da produção — pelo fomento das trocas e pelo confronto de constrangimentos mútuos entre múltiplos produtores concorrentes, e entre estes e os consumidores — e ninguém dá nada a ninguém. E a troca mercantil não dispensa uma moeda de troca que a facilite, embora com a decadência do trabalho assalariado seja conjecturável o aparecimento de outras moedas de troca em substituição do dinheiro (mesmo do existente sob formas diferentes das tradicionais moeda metálica e nota de banco). Até uma hipotética sociedade de grupos de produtores cooperativos associados, na qual as trocas fossem baseadas na equivalência entre valor de troca e valor de custo, tornando impraticável a continuação da transformação do dinheiro em capital, não dispensaria uma qualquer moeda de troca, por exemplo, correspondente à unidade do custo de produção (o tempo de trabalho consumido).

Ao contrário do que o Marx enfatizou e os marxistas e neo-marxistas empolam, o que constitui um verdadeiro fetiche no capitalismo não é a mercadoria nem o dinheiro, que lhe são muito anteriores: é a mercadoria trabalho vivo, apresentada na forma de trabalho assalariado. É na sua existência que se baseiam a alienação do trabalho e a exploração dos trabalhadores, pela apropriação de trabalho alheio através da troca desigual do trabalho vivo fornecido pelos trabalhadores pelo menor trabalho morto que recebem em pagamento. Ela, aliás, é uma aberração no mundo das mercadorias capitalistas: a sua produção não é fruto do emprego de capital, não reclamando lucro, e a fixação do seu valor de troca e do seu preço escapa totalmente aos seus produtores, que só muito esporadicamente, mercê de condições temporárias favoráveis e de grande coalizão, conseguem obter relações de troca menos desvantajosas. Os seus produtores estão à mercê dos compradores, que lhes pagam com produtos do seu trabalho contendo menos trabalho do que aquele que eles lhes forneceram, numa troca desigual que constitui a génese da exploração a que estão sujeitos.

Um novo modo de produção emergirá sobre a ultrapassagem histórica da mercadoria trabalho assalariado, nomeadamente, porque o capitalismo está esgotando a capacidade de continuar a utilizá-lo na proporção em que o fazia. Tal como no passado foi o desperdício da capacidade para trabalhar pelo modo de produção tributário — devido ao crescimento da produtividade, que esgotou a sua capacidade de a empregar como até então, na produção de trabalho servil — que proporcionou as condições propícias para a expansão do modo de produção capitalista da esfera da circulação das mercadorias para a da produção e o seu desenvolvimento, promovendo o aproveitamento da força de trabalho disponível generalizando a transformação do trabalho em mercadoria, também no futuro será o crescente desperdício pelo capitalismo da capacidade de produzir trabalho existente na sociedade, esgotadas as suas possibilidades de continuar a empregá-la como até então, sob a forma que nele lhe é própria, na produção de trabalho assalariado, que ditará a sua superação.

O futuro poderá ser baseado na troca de produtos do trabalho (mas sobre isso nada está determinado pelas cartas). Se tal vier a acontecer, ainda que não elimine a troca desigual entre grupos de produtores associados, constituirá certamente mais um progresso na organização do trabalho e na repartição do produto social, até que a troca equitativa emirja na sociedade como valor ético possível e necessário. Não se pense, porém, que novas relações de produção baseadas na troca dos produtos do trabalho se constituirão por um retorno à pequena produção individual. A grande produção com interconexão de múltiplos trabalhos e a inovação permanente são outras das conquistas civilizacionais que não serão abandonadas nas actividades em que se manifestarem necessárias. E não se imagine que a perda do domínio económico do modo de produção capitalista e do domínio ideológico e político da burguesia acontecerão abruptamente. Um longo período de formas difusas de entrelaçamento e de convivência, correspondendo à fase da lenta revolução económica, e outro não menos longo de disputas ideológicas e políticas, que poderá culminar em revoluções políticas violentas, abarcando o que o Marx designou por época de revolução social (no seu caso, restringindo-a erradamente à revolução política), espera a humanidade, até que outra forma de organização do trabalho e de repartição do produto alcance expressão dominante na sociedade.

Os modos de produção não desaparecem do dia para a noite, e a sua extinção não está ligada à quebra da sua eficácia interna. Nenhum modo de produção se extinguiu devido a uma crise económica mais prolongada, nem devido a qualquer colapso económico; tanto assim é que têm persistido, embora como resquícios, até muito tempo depois de terem perdido a relevância económica de que dispuseram e de as suas classes sociais dirigentes terem perdido o domínio ideológico e político que exerceram. Esta persistência deve-se ao facto de manterem parte da sua eficácia interna, ainda que a sua importância no conjunto da produção social tenha ido decaindo e, deste modo, tenham perdido eficácia social. Com o modo de produção capitalista não irá ser diferente, e ele também não será substituído enquanto modo de produção dominante por quebra da sua eficácia interna — um determinado nível da taxa de lucro — que poderá ir mantendo enquanto lhe for possível a reconstituição das condições necessárias para o efeito, mas por perda da sua eficácia social, isto é, quando a sua eficácia interna deixar de coincidir com a eficácia necessária e possível no conjunto da sociedade, porque já não consegue desenvolver as forças produtivas sociais.

A eficácia necessária e possível na sociedade, pelo aproveitamento da capacidade produtiva disponível, e o modo de produção que a realiza não decorrem de qualquer ideia pré concebida sobre o tipo das relações de produção desejáveis para concretizar uma qualquer utopia, nem de qualquer outro que se imagine possível, mas do tipo de relações de produção que se vá afirmando com maior viabilidade económica e social na ocupação das pessoas e na satisfação das suas necessidades. Isto ocorre quando um novo tipo de relações de produção — isto é, uma nova forma de organizar o trabalho e de repartir o produto — se manifesta capaz de realizar com o modo de produção dominante trocas desiguais que lhe sejam favoráveis. Por um lado, o novo modo de produção ocupa, sob novas formas de organização do trabalho e de repartição do produto, a força de trabalho que vai sendo disponibilizada pelo modo de produção dominante, e, por outro, produz com maior eficácia mercadorias que lhe permitem realizar com aquele trocas desiguais vantajosas, auferindo os proventos das transferências de valor.

Os produtos que constituirão as mercadorias do novo modo de produção, ou as técnicas com que serão produzidos, não são relevantes para o caso, porque serão os produtos que a sociedade consumirá, quer sob a forma de meios de produção para o modo de produção dominante, quer sob a forma de novos meios de subsistência, quer sob a forma dos seus próprios meios de produção, e as técnicas serão as existentes, até que sejam inventadas outras mais eficientes e eficazes. Alguns desses produtos serão do mesmo tipo dos produzidos pelo modo de produção dominante — constituídos, por exemplo, por meios de produção e de circulação — e que respondem às necessidades de manutenção daquele, mas o que distinguirá estas mercadorias é serem produzidas em cada vez maior escala sob novas relações de produção, de modo a irem constituindo um mercado sustentável e de amplitude crescente.

Tal como ocorreu no passado, porém, um novo modo de produção estabelece-se, antes de mais, na esfera da circulação das mercadorias, para facilitar o escoamento da produção em crescimento, alastrando depois para a prestação de serviços produtivos e pessoais, desempenhando essas funções em simbiose com o modo de produção dominante, e só então se expande para a esfera produtiva, em concorrência com ele. A transição entre modos de produção social, por isso, ocorre por um longo período de mudanças económicas, ideológicas e políticas, durante o qual as pessoas disponibilizadas pelo “capitalismo realmente existente” passam a ser ocupadas sob novas relações de produção. Permanece em aberto, portanto, saber se nos tempos vindouros a troca das mercadorias (sejam objectos ou serviços) será assegurada maioritariamente por trabalhadores associados (no comércio e na prestação de serviços), pondo aí termo à exploração, ou se por uma nova categoria de intermediários na gestão da circulação da produção, embrião de uma nova classe social exploradora emergindo como comissionista, como ocorreu antes com a burguesia mercantil, continuando a exploração sob outras formas.

O modo de produção capitalista emergiu sem que o modo de produção tributário entrasse numa grave crise ou em colapso económico e sem ser produto da invenção de novas técnicas. Antes pelo contrário, o seu aparecimento em cena ocorreu durante a fase de maior expansão do modo de produção tributário, numa altura em que o crescimento da produtividade agrícola e pecuária aumentava ainda mais a produção, fortalecendo a importância da burguesia mercantil para o seu escoamento, e libertava cada vez mais força de trabalho, a qual passou a ser ocupada em actividades existentes — por exemplo, na produção artesanal de armamentos, ferramentas, alfaias, veículos e utensílios, etc., que já eram produzidos sob a forma artesanal corporativa, na produção agrícola e pecuária e na circulação das mercadorias — e em novas actividades, mas sob novo tipo de relações de produção, consubstanciado no contrato de trabalho salarial em substituição do regulamento corporativo e no contrato de arrendamento fundiário em substituição do tributo servil (tornando necessária a divisão da grande propriedade fundiária, para facilitar a sua transformação em mercadoria e possibilitar a expansão mais rápida das novas relações de produção na agricultura), que permitiram o aumento da taxa de exploração, maior acumulação e o desenvolvimento da produção, revolucionando as técnicas, a organização dos processos produtivos e a produtividade do trabalho.

É este aparente paradoxo — aumento da capacidade produtiva e da eficácia interna do modo de produção dominante, e, em simultâneo, redução da sua eficácia social, excluindo da produção cada vez maior número de pessoas que não encontra como subsistir — que faz com que os modos de produção entrem em decadência, percam o domínio social que exercem e acabem sendo substituídos nessa função por outros. Para o surgimento de um novo modo de produção, ou para a expansão de um já existente, mas dominado, basta a existência de três ingredientes: produto acumulado para adquirir meios de produção; força de trabalho disponível, que já não seja lucrativo ocupar sob as relações de produção dominantes; e mercado em expansão. A partir de então, o aumento das trocas desiguais entre os modos de produção permitirá ao modo de produção emergente ou em expansão maiores taxas de acumulação, as quais, por sua vez, facilitarão o seu desenvolvimento progressivo pela expansão e o aperfeiçoamento gradual das novas relações de produção. Isto tampouco foi, é ou será exclusivo do capitalismo, mas apenas há pouco tempo se tornou medianamente compreensível.

Esta concepção da transformação social difere substancialmente da concepção marxista, que a concebe pela entrada do capitalismo em decadência devido à ocorrência de crises económicas cada vez mais graves, ou pelo colapso económico, e culminada pela conquista do poder político através da acção das massas proletárias exploradas. As duas variantes do marxismo, seja a economicista e reformista, que prevê a conquista do poder político pela via pacífica e institucional, seja a voluntarista e revolucionária, que a propugna pela via violenta e insurreccional, têm uma concepção da revolução social restrita à revolução política, e parece não compreenderem, apesar de alguma controvérsia nas suas retóricas iniciais, que antecedendo a revolução política, e, depois, concomitante com ela, ocorre uma lenta e longa revolução económica produzida pela emergência de um novo modo de produção ou pela expansão de um já existente, mas dominado, como resultado da decadência social do modo de produção até aí dominante.

Um novo modo de produção tem novos actores sociais, de entre os quais surgirão os protagonistas da revolução política que conduzirá ao poder uma nova classe social dirigente. Pretender que o protagonista de uma nova revolução política seja uma classe social do modo de produção em decadência, e não do modo de produção emergente, constitui um absurdo; determinar, além do mais, que esse protagonista seja a classe explorada do velho modo de produção, também ela com a sua expressividade social em declínio, constitui um duplo absurdo. É esse o drama das concepções marxistas sobre a revolução social, o qual inviabiliza a realização da sua profecia. A revolução social é um processo permanente de transformação económica, ideológica e política da sociedade, apesar da aparente estagnação por longos períodos — devido à variedade das formas por que se desenrolam as lutas das classes, à diversidade dos objectos concretos que as motivam e à incapacidade dos actores para compreenderem o significado e a amplitude dos efeitos que produzem — que não se reduz à conquista do poder político, nem depende da vontade das massas ou das elites. Pura e simplesmente, ela é necessária e ocorre, ainda que os actores sociais não tenham consciência plena de a estarem realizando.

Isto em nada invalida o reconhecimento do mérito do Marx na análise da realidade social do seu tempo e na criação de um vasto instrumental conceptual de crítica do capitalismo. Apesar dos equívocos, das insuficiências e dos erros da sua obra, ele formulou conceitos riquíssimos, descobriu relações escondidas, anteviu desenvolvimentos que se confirmaram, enfim, desbravou a mata da ignorância sobre a realidade social abrindo clareiras que iluminaram com a esperança os explorados e oprimidos e traçando pistas que não conduzindo à prometida felicidade se revelaram de valor inestimável na luta pela melhoria das suas condições de vida. É esta empreitada, expurgada do idealismo que contaminou a obra do Marx, de que os discípulos não se aperceberam ou que não souberam criticar, que é necessário retomar e aprofundar, de modo a podermos compreender melhor a realidade social do nosso tempo. Para tentarmos perceber o que já se ergue no presente sem que o descortinemos ou atribuamos a devida importância e significado, é necessário olharmos com atenção para as novas relações de produção que estão dando aplicação à força de trabalho disponibilizada pelo “capitalismo realmente existente”, porque já não lhe é lucrativo empregá-la sob as relações de produção que lhe são próprias.

Deveremos ter em conta, porém, que um novo modo de produção não é caracterizado pelos novos produtos nem pelas novas técnicas com que sejam produzidos nem por formas de salariato disfarçado (parcerias com os detentores dos meios de produção, trabalho no domicílio, retribuição por peça, por tarefa, etc.) e outros expedientes (por exemplo, o falso trabalho independente, prestado na realidade como trabalho subordinado) possibilitados pela crescente individualização e a maior informalidade do contrato de trabalho provocadas pela desregulação deliberada de que é objecto o mercado de trabalho, e pela gestão em tempo real da produção e da prestação de serviços, através das tecnologias computacionais de automação e de comunicação, com que a burguesia e os seus sucedâneos, ambos desprovidos de escrúpulos, tenderão a reduzir encargos e a aumentar a jornada de trabalho e a taxa de exploração, uma para contrariar a baixa da taxa de lucro do “capitalismo realmente existente” e outros para obterem os seus próprios lucros e acumularem dinheiro e outras riquezas que lhes permitam expandir os seus negócios.

Um novo modo de produção será caracterizado pelas relações sociais verdadeiramente novas com que o trabalho será organizado e o produto repartido, distintas das relações de produção capitalistas ou salariais, as quais acabarão por surgir da evolução de algumas das formas de transição que actualmente despontam. Poderá acontecer serem baseadas na organização cooperativa do trabalho e na repartição equitativa do produto, mas é bem provável que não o sejam. Se não o forem, o futuro próximo não será brilhante, mas o mundo não acabará por isso.

Almada, Janeiro de 2008.



(Versão reformulada de um texto intitulado Alguns tópicos acerca da decadência e da superação do capitalismo, publicado originalmente no Dotecome Forum, em Junho de 2006. Esta versão foi publicada aqui, inicialmente, com o título da versão original, em 14 de Outubro. Porque a identidade dos títulos dificultava a pesquisa, remetendo-a para a versão original, foi eliminada e republicada com o título actual, em 31 de Outubro. Não aprecio qualquer das versões (a original — ponto de partida para novas discussões naquele fórum que durariam muito pouco, porque no seu decurso rapidamente me dei conta de contradições de concepções do Marx que eu próprio nela ainda repetia, como por exemplo a da identificação da força de trabalho como sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado e a da designação de mais-valia dada ao valor apropriado — então, ainda menos do que esta), razão porque não as publicara aqui antes. Poderia tê-la deixado ficar com o título da versão original; não seria por isso que o gato iria às filhós, mas decidi-me pela republicação com o novo título mais sintético e, de certo modo, diferenciador. Aliás, publiquei-a como recurso, porque não tinha nada novo disponível para publicação no mês de Outubro e, numa ida à garagem em fins de Setembro, a encontrei, por acaso, num velho computador que mantenho com sistema operativo e programas mais antigos e onde guardo textos e outras bugigangas da época).